A NOTÍCIA – MAURO PAZ

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Mauro Paz 

PARTE 1

1.

Depois de mudar para São Paulo, sempre que o telefone vibrava e na tela surgia o número da casa de minha mãe, eu esperava uma notícia de morte. Numa tarde de setembro a notícia chegou. Ao contrário da ordem natural do tempo, não trouxe o nome de nenhum dos meus pais. Cadu, meu sobrinho de dezessete anos, estava morto. E eu preso em um táxi na marginal Pinheiros sem saber o motivo. Sem saber o que dizer ao meu irmão. Sem saber qual caminho indicar para o taxista se livrar do trânsito. Eu só sabia que precisava embarcar no primeiro voo para Porto Alegre e encontrar Cadu pela última vez.

2.

Quando meu irmão aproximou o guri do vidro da maternidade para que eu o visse melhor, soube que se tratava de um sobrevivente. Cadu nasceu prematuro. Sete meses. Dois quilos e meio. Quarenta e dois centímetros. Mesmo assim, reunia toda a força do pequeno corpo para encher os pulmões ao gritar e deixar claro o quanto queria viver. Deixar claro que, mesmo nascido antes do tempo, escolheu lutar. O que Cadu ainda ignorava é que, por mais forte que se tornasse, nada apagaria o fato de que nasceu negro.

3.

O pior aconteceu, Carlos Eduardo está morto. Acredito que Douglas queira você por aqui, disse meu pai. Aquela foi a segunda vez que nos falamos em nove anos. A primeira vez que meu pai me procurou depois de eu sair de casa. A única vez que ouvi a voz grave de Seu Nelson tremer. Não me lembro do que respondi, nem de como a ligação terminou. Lembro do trânsito parado na Marginal. Do fedor do Rio Pinheiros entrar pela ventilação do carro. De eu avisar ao editor que não voltaria ao jornal. Das sinaleiras vermelhas acesas ao redor. Dos pingos nos vidros. Do som cansativo das borrachas dos limpadores de para-brisas. De o taxista espiar pelo retrovisor como se fosse crime um homem chorar.

4.

O táxi me deixou no apartamento. Os telefones de Douglas e Jussara, minha cunhada, desligados. Comi o resto de pizza da noite anterior. Separei uma muda de roupa na mochila. Liguei para Júlia até lembrar de que era o horário do pilates. Prendi um recado na porta da geladeira. Não contei o motivo da viagem. Disse apenas para me ligar. Passava das oito da noite. Cheguei rápido a Congonhas. Em uma hora sairia o último voo para Porto Alegre. O atendente magrelo da companhia aérea pediu-me para aguardar o tempo previsto de embarque. Em caso de algum no-show, me encaixaria no voo. Encostei a mochila no balcão. Acompanhava a conversa entre o magrelo e a agente no portão de embarque através de um walkie-talkie, quando Júlia ligou. Ficou puta por eu não passar no estúdio de pilates. Por eu não saber o motivo da morte de meu sobrinho. Por mais uma vez eu a deixar para trás. O atendente acenou com um sinal positivo. Eu disse a Júlia que, ao pisar em Porto Alegre, ligaria. Embarquei sem considerar o valor pago pela compra de última hora e o medo de voar.

5.

Aos dezessete anos, meu maior medo era me tornar uma cópia de Seu Nelson. Não fisicamente. O nariz largo e a cabeça ossuda de meu pai acompanhavam os homens da família, inclusive Cadu. Esse era um jogo vencido. Sentia medo de me tornar um homem morno. Conformado. De pantufas. Contas pagas. Sem alegrias ou reclamações. Jamais diria que, vinte anos depois, meu maior medo seria voar de avião. Até porque naquela época não cogitava embarcar em um.

6.

17 de julho de 2007 é a data de nascimento do meu medo de voar. Naquela manhã, desembarquei no Aeroporto de Congonhas vindo de Porto Alegre. Chovia um bocado. Ruas alagadas. Trânsito lento. Desisti de passar em casa. Fui direto ao jornal. Cansado e sem tomar banho pela manhã, contava os minutos para bater o ponto. Quando faltavam sete minutos para as dezenove horas, o telefone do editor tocou. Um Airbus A320 em procedimento de pouso colidira contra um prédio no final da pista de Congonhas. Restos da carenagem do avião atravessaram a Avenida Washington Luiz. Os bombeiros trabalhavam no controle do fogo. Era preciso um repórter no aeroporto para apurar fatos, nomes das vítimas, causas do acidente. Fui o felizardo. A partir daquele dia, sempre que sento na poltrona de um avião, aciono o botão de serviço. Peço ao comissário um copo de água para o comprimido de Rivotril descer mais fácil pela garganta e eu não ter um acesso de pânico durante o voo.

7.

Pisei no avião e uma aeromoça de rosto enrugado, que estava mais para aerotia, pediu licença para baixar a maçaneta da escotilha. Dezenas de pares de olhos apontaram na direção do meu rosto quando surgi no corredor. Uma senhora de narinas largas, perfume doce e cabelo tingido de loiro comentou com o adolescente ao lado que era um desaforo o avião atrasar dez minutos por conta de um passageiro. Na primeira fileira de assentos, um senhor de rosto muito vermelho e pescoço entalado no colarinho da camisa esticou as mãos em direção ao comissário de bordo para questionar se o avião partiria. Parei em frente ao assento indicado no cartão de embarque e espiei os bagageiros ao redor. Não sobrara um cantinho para encaixar a mochila. O comissário de bordo se aproximou. Conferiu o número do assento no cartão de embarque e sugeriu que eu deixasse a bagagem embaixo do banco. Estofada de roupas, a mochila ocupava todo o vão reservado para as pernas. O vento ejetado pelo narigão do comissário a suspirar chegou ao meu rosto. Pediu a mochila. Enquanto eu ajustava o cinto de segurança, o comissário andava de ponta a ponta no corredor em busca de um canto no bagageiro. Quando encontrou espaço para a mochila próximo às saídas de segurança centrais e imaginou se livrar de mim, levantei a mão. Precisava do copo d’água para engolir o remédio. O avião taxiava em direção à cabeceira da pista. Apressado, o comissário trouxe o copo e um punhado de gotas saltou por cima da borda de plástico em direção à minha camisa. Após se desculpar, o comissário sinalizou para a aerotia próxima à cabine dos pilotos e iniciaram a encenação dos procedimentos de segurança. Rivotril no sangue, as costelas relaxaram no assento. Nas poltronas à esquerda, duas gurias de pernas e braços raquíticos e rostos de bonecas comentavam a balada na noite anterior. Pela conversa, trabalhavam como modelos e foram convidadas para o camarote de algum herdeiro-paga-lanche. Fechei os olhos. As vozes das ninfetas misturadas ao zumbido crescente das turbinas enfileiravam nomes de homens e drogas. Desenhavam o enredo cabuloso sobre uma amiga vítima do boa-noite-cinderela que acordou num quarto de motel nua e sozinha. A carenagem do avião tremia. O ar úmido deslizava no contorno das asas. E as rodas do trem de pouso estalavam nas emendas da pista em contagem regressiva. O dinossauro de aço remava eufórico para emergir no ar com peso de pluma. O avião descolou do asfalto. Senti o corpo leve e, antes de adormecer, perdi os pensamentos nas imagens de festa criadas pelas vozes das gurias.

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Mauro Paz
 é escritor, publicitário e cineasta. Além da participação de diversas antologias, Mauro tem 3 livros publicados: Por Razões Desconhecidas (IELRS), finalista do Prêmio SESC de 2012; São Paulo – CidadExpressa (Editora Patuá); e do romance Entre Lembrar e Esquecer (Editora Patuá) finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018.

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Trecho do Romance Entre Lembra e Esquecer (Editora Patuá), finalista do Prêmio São Paulo de 2018.