Em sentido lato, analisando bem os fatos, digo: fui um sujeito distraído; a distração mesma de vagar por aí, perdido, desobrigado. Talvez fantasioso, utópico, sonhador. Nada demais. Na generalidade dos que me conheciam: um tipo relapso, desatencioso, preguiçoso. Portanto, um prato cheio para se tornar um: desocupado; ou vagabundo, para ser mais claro. Foi isso que discerni, de uns cochichos aqui e acolá; um pré-juízo (a mim) do senso-comum da tradicional sociedade alencarina. Era, vez por outra, o mote da roda de conversas: “Não vai querer nada com a vida”; “Manda ele passar uns dias lá em casa, pra você ver”; “Tocar bateria, negócio de banda, hummm, não sei, não”.
Dessas escutas de soslaio, o problema foi tomando corpo, vida própria, e, enfim, tilintou agudo na minha calota craniana: “Opa, vinte e quatro anos, todo mundo se formando… meu irmão, meus amigos, e eu nada!”. A bigorna, a joça da responsabilidade, desabou sobre mim. Inferno. Aprumou-se, com blocos e lembretes mal diagramados no quadro negro da minha mente, uma série de “medidas a tomar, imediatamente!”. Devia recuperar o tempo perdido, nem que, para isso, tivesse de atropelar os passos. “O futuro está logo ali e virá, feito a foice da morte, cobrar o seu preço” – esse maldito, o pensamento agora arraigado, comprometia parte considerável do meu ser; vísceras, nervos, músculos.
Em 2006, fiz a lista de afazeres para um ser supostamente viável. A ideia inicial: limpar os “erros” do passado – veja, um típico criminoso recém-saído de Guantánamo. Ansiava ser visto com bons olhos pelos meus – ingênuo, dócil e pequeno; ou cansado, ou doente. Primeiro, porque já não aguentava mais aquela ruma de cálculos e afins, teria de definir, de uma vez por todas, a mudança de curso, aquilo que eu estava empurrando com a barriga há anos, por puro medo de frustrar (os outros): de agronomia para direito. “Disparate, tem de terminar agronomia, depois faz o que quiser!”. Decidi-me. Prestei novo vestibular. Um mirrado passo para a maturidade? Não sei. Simplesmente tenho orgulho da decisão. O peso não tardaria muito a estrangular o meu pescoço: “Mas não devia terminar tão velho, fora do mercado!”. E olhe que, de fato, já me sentia velho, um senhor de vinte e seis anos. O alerta caiu como uma luva, naquela circunstância, para mim. Apertei, os nervos e tudo; cheguei a fazer sete disciplinas simultaneamente e terminei em exatos quatro anos, junto com a aprovação na OAB. Foda.
Pois foi justo na cerimônia de formatura que os sinais de vulnerabilidade de meu pai despontaram, perceptíveis, fortes, preocupantes. Desfalecia, sentia muito calor, dor de cabeça, por pouco não teve uma síncope. Foi atendido pelos socorristas e pelo médico de plantão, no pátio da universidade, dentro da ambulância. Não precisou ir ao hospital.
Nos dois meses que se seguiram, passou por clínico geral, cardiologista, neurologista e psiquiatra, e o resultado foi quase unânime: pânico. “Seu pai teve um quadro de pânico. Não há com o que se preocupar”. Sem exames especiais, nem nada. Então: mais medicamentos para compor a sua grande lista.
Numa quarta-feira cinzenta – parece que avisava –, socorri-o na Avenida Pontes Vieira, próximo à Caixa Econômica: uma batida. Ele, sem uma gota de sangue, chorando, não compreendia o porquê do ocorrido; pedia-me auxílio para decifrar. Mirava vago o infinito. Segurava minhas mãos. Tinha pavor nos olhos. Tremia. Nada, absolutamente nada bem para um homem ativo, independente. Meu herói havia se transmutado numa criança indefesa, pedindo-me, entre soluços e embargos, proteção. Asfixiante. A partir dali, inverteram-se os papéis.
Cinco dias sem se levantar, dentro da rede. Depressão severa? Soluços que não cessavam. Alucinações. Perda completa dos sentidos. Emergência. Ambulância entrando no prédio, estridente, pela segunda vez. Diagnóstico: câncer, tumor cerebral nível quatro, o mais agressivo. Decreto: seis meses de vida. Parei aí. O tempo escorria. Puxava fundo o ar para respirar: não vinha. Deletei qualquer urgência que não fosse essa; trabalho, namoro etc. Status: meu tempo, meu pai. Abalo psíquico: severo. O cadafalso da iniquidade me sugou. Descrença no mundo, em Deus. Remédios, remédios, que não remediavam.
Emergir, alcançar um fio de ar. A respiração: ofegante, segundo a dor de meu pai. Não tinha o direito de esmorecer, me cobrava. Voltei a trabalhar, a fórceps. Qual a arte de fingir normalidade no caos? As contas, os remédios, a alimentação etc. etc. etc. Minha força a quem nunca me deixou faltar nada, e, se preciso fosse, passaria fome e me daria a sua comida – costume pra cabra criado nas brenhas do sertão.
Segui no automático, sem lista, coisa nenhuma, por um ano e meio, quando meu pai descansou. Jazi inerte. Um toco devastado, sem vida, boiando na imensidão. Um marinheiro errante, ou uma alma penada, navegando ao dissabor do vento. Disritmia vacilante por mais um ano. Quem tocaria o barco comigo? Quem me ensinaria a advogar? Quem me diria a verdade?
2012. O ínfimo sopro da retomada, uma especialização, e infligi-me uma nova lista – a lista com o peso da bigorna, avisando: logo ali, olha, o futuro incerto. No entanto, dessa vez havia um desejo adormecido, longínquo, de viajar e morar fora, com a miragem de conseguir um bom emprego, na volta – ainda, coitado, o mesmo papagaio repetidor de sempre. O ponto crucial: mestrado em Portugal. Em 2013, recebi o chamado inadiável: morar em Coimbra por dois anos e concluir o mestrado. A tarefa hercúlea me dava arrepios, apesar de querer prová-lo. O medo do invisível, do irreconhecível, aturdia. Aportei na cidadezinha linda, congelada no século XX, com paredes grossas, centenárias; portas esculpidas com flores, desejos; estradas de pedra, por onde passaram, certamente, cavaleiros, religiosos e artesãos medievais. Ainda que cristão potencialmente católico, sentia uma relação ancestral, divina, com aquilo.
Cumpri o meu veredito, em 2015. Regressei para amar Mayara, a namorada que em 2014 havia deixado, numa passagem rápida a Fortaleza, e quedei um pouco de férias. Louvores, louvores ao novo mestre da família. “Nosso futuro doutor!”. Não me importo nada com isso de título, posição social. Para mim, só um meio para conseguir ser viável, ok, nesse sistema capetalista. Achava que não ligava tanto para as cobranças: “Quando vai terminar o colégio, a faculdade? Quando vai casar? Quando vai…? Quando vai…?”. Infinito. Ligo sim, me incomoda, senão não falaria – e não me submeteria. Sou pequeno, suscetível, ainda. A verdade é que concluí o curso, além de toda a satisfação impregnada, claro – porque o mestrado não é só o mestrado –, para garantir um futuro incerto. Ledo engano, o engano que me sobrava, a crença de estar caminhando certo e que isso, só isso, me tornaria são e salvo. Faltava, como falta, sempre, e eu, imaturo, não sabia.
Outro ponto para a lista, mais brando, planejado a dois: zarpar do trivial, por amor e com amor. Correria. Organizar o casamento, concorrer a duas vagas na Universidade de Salamanca e obter os respectivos vistos – um folhetim à parte. Embarcamos conscientes, despregados das convenções sociais, buscando vivenciar a humanidade, a mesma humanidade que vem raiando de várias formas em mim. A arte. Nunca aceitei minha ex-namorada dizer que “As paredes do Benfica são horríveis; deviam ser pintadas de uma cor só!”. E apareceu Doria, em Sampa, impondo pintar tudo de cinza, talvez para combinar com a poluição de que ele não dá conta. E depois veio esse desastre todo do inominável. E vem vindo, vem vindo, como um tsunami. E a arte que urgia há tempos, pedindo espaço, atenção, emerge cada vez mais forte, mais e mais, que hoje, se perguntarem o que será de mim, digo que será arte.
Pronto. Este é o tempo de não fazer listas.
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Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.