ATRÁS DO PENSAMENTO – VERA SAAD

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Vera Saad

Eu tenho um blog intitulado Palimpsesto. Palimpsesto é o nome dado ao ato de raspar um pergaminho para se escrever em cima, haja vista seu alto valor. A criação do blog foi movida por uma pergunta que ainda me persegue e me incomoda: há ideia 100 % original? e, por conseguinte, somos originais? O escritor é, sobretudo, leitor (assim o espero). Daí a grande questão: até que ponto sua criação literária não sofre interferências e até que ponto é primeira e única? No diário que mantinha durante sua vida diplomática na Alemanha, Guimarães Rosa escrevia “100% original?” acima de alguns de seus pensamentos.

Para Pierce, o pensamento é uma inferência, argumento este aliás suscitado por ele contra a tese cartesiana acerca da intuição. Nenhum pensamento nasce do nada, uma vez que o pensamento é infinito, sem começo ou fim, logo, a possibilidade da intuição, que justamente se engendra do nada, é nula. Porém, a ciência, a arte e a sociedade permaneceriam a mesma sem a urdidura de algo original, e aqui me refiro à criação de novos conceitos, novas concepções artísticas, e invenções outras capazes de modificar peremptoriamente o olhar humano. Retomo Pierce e seu complexo conceito de abdução.

Pierce nega a intuição, que surge do nada, porém, acredita no instinto, inerente ao ser vivo. Assim, “a habilidade para fazer conjecturas é para o homem aquilo que o voo e o canto são para os pássaros” (SANTAELLA, Lúcia. O método anticartesiano de C.S.Pierce. São Paulo: Editora Unesp, 2004. p. 105). E a abdução (também o insight), tida por ele como uma inferência inconsciente, é uma espécie de julgamento de percepção, ou seja, um tipo de proposição que nos informa sobre aquilo que está sendo percebido.

Há que considerar os três elementos que envolvem a percepção: o percepto, que corresponde ao objeto da percepção, o percipium, ou o modo como o percepto, traduzido pelos nossos órgãos sensórios, é imediatamente interpretado no julgamento perceptório, que se refere ao terceiro elemento da percepção.

Segundo Pierce, o julgamento de percepção é falível, mas indubitável, e apenas, sob este aspecto difere da inferência abdutiva. Todavia, na sua formação, ambos são idênticos: são inferências inconscientes, fora do nosso controle (o que muito a aproxima da criação artística). Ainda mantenho minha dúvida, mais sofisticada à luz de Pierce, com algumas ressalvas, confesso, pois entendo intuição como algo relacionado à percepção, e não ao pensamento primeiro [até porque provenho de uma família intuitiva, e tal fato é incontestável]. Mas, abro a discussão para quem mais quiser chegar. A roda está aberta.

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), Vera Saad é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger.