OLHAR DO ARTISTA – VERA SAAD

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Vera Saad

Nunca entendi por que associam cavalo à liberdade, um animal sobre cujo lombo o homem sempre montou. Talvez por isso eu ache que os olhos de um cavalo sejam tristes. Até que no caminho para casa resolvi prestar atenção nos olhos de uma pomba. Não vi tristeza, medo, mas horror, um horror que desconhecia. Lembrei-me da minha vó, tão cuidadosa com uma. “Ela estava manca e com muito frio”, me disse. Quase chorei por sua delicadeza. Também me lembrei de Kerouac e o irmão indignado com aquele mundo. Um rato bastante machucado e o pequeno sem entender como alguém era capaz de matar.

Não havia pensado em pombas e ratos até aquele dia. Quando percebi o quanto me faltava compaixão, não conseguiria ter a delicadeza de minha avó ou o assombro do irmão de Kerouac. O máximo que sempre sinto é alívio. Por não cruzar com nenhum deles no caminho.

É realmente difícil olhar para um bicho como um rato e enxergar mais do que asco. Vê-lo de fato como é, sem os adjetivos que lhe demos ao longo da história, é um exercício bastante penoso mas muito compensador. Esse é o olhar do artista genuíno, que vê um mundo além do restrito aos olhos dos homens.

O filósofo alemão Heidegger uma vez disse que o verdadeiro perguntar grego não é aquele que aponta para uma árvore e indaga: “o que é aquilo”, mas sim aquele que questiona “o que é aquilo que se designa árvore?”. Antes do nome árvore, a árvore já existia. Talvez esse olhar nos leve ao perguntar grego, a essa essência, que preexiste ao nome, ao asco. Talvez também esse olhar me volte aos olhos daquela pomba e me faça enxergar que o horror e a tristeza sejam meus.

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), Vera Saad é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger.