CALANGO – FERNANDO FERRONE

Não fosse a primeira vez de Josias naquela sala, naquele apartamento, talvez ele não tivesse se surpreendido. Mas não era o caso.

“Cabô”

“Putz… acho que acabou a luz mesmo”

Não estivesse Josias enfeitiçado por Kimberly, ele teria sacado de cara. A coisa não iria terminar bem. Mas, digamos que sacasse. Que poderia fazer? Ele tinha aceitado cuidar do molequinho e não poderia simplesmente deixá-lo sozinho com um pacote de bolacha maisena na mão.

“Como você se chama mesmo, menino?”

“João”

“João, fica calmo, tá OK? O tio vai dar um jeito. Onde que fica a caixa de disjuntores?”

“…”

“Sabe aquele lugar em que a mamãe mexe quando apaga a luz, onde que fica aquilo lá?”

O menino abraçou o lagarto de pelúcia e não soltou um pio. Dava pra ver somente a mancha escura do corpo dele contra a luz fraca da rua que chegava da janela. Josias pensou um pouco no que disse e segurou uma risadinha.

“Deixa pra lá. Dá pra ver que foi na rua toda. Vou acender a lanterna aqui do celular e procurar uma vela, tá OK? Pronto, viu só? Mas, olha, você precisa me ajudar, onde que tem uma vela porque a bateria do tio não vai durar muito, não.”

Que merda de celular velho, que merda de promessa, aceitar tomar conta do moleque. Cada roubada em que me meto, pensou Josias. Mesmo que fosse pela Kimberly. Tá começando a não se pagar essa mulher.

“Você sabe onde tem uma vela, não sabe? Aquelas que a gente acende pra iluminar. Tipo… tipo, aquela de aniversário, sabe? Mostra pro tio onde tem uma que eu acendo e aí vai ficar clarão aqui, você vai ver, Joãozão”.

O menino sorriu e fez que sim com a cabeça.

“Legal, eu vou iluminando com a lanterna e você me mostra”

O menino se levantou e foi até o quarto da mãe. Havia um colchão de casal ao chão, uma arara com roupas, um cesto e um criado. O menino foi até ele e abriu a última gaveta. Pegou um objeto com os dedinhos e entregou orgulhoso pra Josias.

“Não, João, não me f…, digo, essa daí não serve. É uma vela de verdade que eu preciso”

O menino continuou segurando a vela do aniversário de quatro anos. Josias achou que talvez os olhos dele estivessem brilhando mais que o normal.

“Não, tá bem, não fica assim não. Essa vela é bonitona, mas se eu acender ela, você vai ficar sem recordação, tá OK? Você não quer ficar sem a lembrança, quer?”

“…”

“Você não sabe do que eu tô falando, né? Deixa pra lá… mas obrigado pela ajuda, vou ficar com a lanterna do celular mesmo. Acho que dá até voltar a energia”

Retornaram à sala, Josias trazendo o menino pela mão. Pegou duas almofadas e jogou-as no chão. Sentou-se e disse para João sentar também.

A mãe do menino, que segundo Kimberly se chamava Natasha, não tinha com quem deixar o filho e pediu que Kimberly cuidasse dele somente aquela noite e nunca mais pediria outra vez. Kimberly não podia porque tinha que sair pra trabalhar e sobrou pra Josias, que nem estava tanto tempo assim com Kimberly, mas que parecia um rapaz ajuizado, com emprego mais ou menos fixo e, pra sorte de ambas, estaria de folga naquele dia. Josias, que estava de quatro por Kimberly, não teve como negar.

“Certo, então, que que você gosta de fazer até a hora de dormir, hein?”

“…”

“Você não é muito de falar, né, João.”

“Tevê.”

“Não dá pra ver tevê. Tá sem energia.”

“História”

“Aí cê me aperta”

No pouco tempo em que ficou no apartamento com as luzes acesas, Josias não conseguiu ver nenhum livro de histórias. Ele se lembrava de alguns pedaços de histórias que sua vó contava a ele quando criança, mas parecia que os pedaços não se juntavam num coisa que fizesse sentido.

“João, que tal se a gente brincar de sombras? Olha, só, eu faço aqui uma sombra com as minhas mãos e você tem que adivinhar o que é. Vamos lá, o que é isso aqui, ó”

“Sombra”

“Hahaha, gozador. Sei que é uma sombra. Mas o que que ela tá parecendo?”

“Dedo”

“Tá, isso não vai dar certo. Diz outra coisa aí pra gente brincar”

“Youtube”

“João, o tio não tem internet pra ver vídeo, não… sem Youtube, tá OK?”

“…”

“Não, João, não chora. Menino não chora, lembra? Mas olha que coisa feia… peraí, que barulho é esse?”

Um ruído vinha da janela. Chovia fraquinho naquela hora, mas de tempos em tempos, vinha um tec. Josias abriu a persiana e botou a cabeça pra fora. Debruçou-se e olhou para a rua, dois andares abaixo. Um vulto, agachado próximo ao meio-fio, procurava algo no chão. Levantou-se e atirou o que encontrou, quase acertando em cheio a testa de Josias.

“Natasha! Abre!”

“Ô, brother, não tem Natasha aqui, não. Vai embora”

“Eu quero falar com a Natasha”

“Ela não tá, volta amanhã. Ou não volta”

Fechou a janela e já tinha dado as costas, quando ouviu outro tec. Abriu novamente a janela e gritou para baixo pro arrombado ir embora que senão ele ia chamar os homens. Que roubada, pensou.

“Pronto, João, o homem foi embora”

“Cocô, tio”

“Como é que é? Ai, João, caralho…”

“Quê, tio?”

“Baralho, baralho. Vamos lá fazer cocô e daí a gente volta e joga baralho, tá OK?”

Levou o menino, esperou, sentiu o cheiro, golfou quatro vezes, tateou com a mão até encontrar o rolo, arrancou um pedaço generoso de papel e conseguiu limpar o bumbum de João. Sentiu-se até bem, depois que saiu do banheiro.

“Pronto, agora vamos jogar bara…”

Batidas na porta.

“Fica aqui sentadinho, João. O tio vai ver o que é”

Seguiu até a porta, colocou o pega-ladrão e abriu uma fresta, iluminando o vão com a lanterna do celular. João, sentado, observava calado.

“Qualé?”

“Cadê a Natasha?”

“Vem cá, você era o gritador aí da rua? Não ouviu que a Natasha não tá?”

“Que que você é dela, daquela vagabunda?”

Josias sentiu o bafo de cachaça misturado ao de cigarro barato. O outro de olhos fechados pela claridade da lanterna, fazia uma careta medonha. Barba por fazer e testa oleosa.

“Não te interessa. Ela não tá, vaza”

“Diz pra ela que eu quero o meu dinheiro. Se ela arranjou outro, não é mais comigo, mas ela me deve o da semana”

“Amigo, recado dado, vaza”

O homem desistiu, virou as costas e desapareceu na escuridão.

Puta que o pariu, pensou, Josias. Que roubada. Tudo isso por uma foda. Não vale a pena.

“Tio?”

Encostou novamente a porta, deu duas voltas na chave e manteve a corrente do pega-ladrão travada.

“Fala, João”

“Leite”

“Mas, menino, você é pidão mesmo, hein? Tá louco”

“…”

“Desculpa, vamos lá, você ainda toma na mamadeira?”

“Copo”

“Tá bom, fica aqui que eu vou preparar pra você. Fica aí com seu lagarto que eu já volto”

“Calango”

“Quê?”

“É Calango o nome… dele”

“Ah, tá OK, Calango. Calango, cuida do João que eu já volto, beleza?”

Viu um copo americano sujo na cuba. Pegou a esponja e lavou-o. Embaixo da pia havia alguns mantimentos, achou uma caixa de leite e uma lata de Toddy. Mediu um copo de leite, chegou a abrir a porta do microondas, achou-se idiota, encontrou e lavou uma caneca de alumínio suja, derramou o leite, achou a caixa de fósforos no parapeito da janela, acendeu uma boca do fogão, colocou a caneca e foi enfiando o dedo até achar que estava bom. Misturou o Toddy e levou para João.

“Toma”

“…”

“Que foi?”

“Não é meu copo”

“Como assim, não é seu copo?”

“É o do Patrulha Canina”

Josias apertou os dentes, respirou devagar cinco vezes e se acalmou.

“João, esse aqui é o novo copo do Patrulha Canina que o tio acabou de comprar pra você. Pode beber”

“Cadê o Chase?”

“Que Chase?”

“O Chase é o cachorro”

“Ele tá desenhado aqui, é que não dá pra ver. Toma que você vai gostar, tá OK?”

“Tá. Bigado, tio”

Josias não esperava pelo obrigado e sentiu-se envergonhado de ter ficado puto com o menino. Ele tinha se comportado até então e se não fosse pela falta de luz e pelo cafetão bêbado, tudo estaria na maior tranquilidade. Esperou o menino terminar de beber. Pegou o copo e o colocou de lado.

“Olha só o que o tio sabe fazer, João”

Colocou a lanterna do celular dentro da boca e ficou fazendo caretas para o menino, que riu um bocado, até começar a bocejar.

Josias apagou a lanterna e acomodou a cabeça do menino na coxa. Ele se ajeitou sozinho no sofá, abraçou o calango e logo pegou no sono. Depois de um tempo, Josias começou a sentir a perna formigar, mas aguentou firme até pegar também no sono. Não queria que João despertasse.

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Fernando Ferrone
nasceu em 1981, atualmente reside em São Paulo. É tradutor e autor do romance à deriva (2017, edição independente). Já publicou contos pelo site Ruído Manifesto. Atualmente, trabalha em seu segundo romance, provisoriamente intitulado A Longa Noite de B.