Da leitura do poema “II- O meu olhar é nítido como um girassol”, de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa, destaco a singularidade do instante, com o choque, sempre presente, da novidade, do nascimento, do descobrimento. Receio cair no raso da vulgaridade; mas, me fiando à percepção, à vontade e ao desejo – sensações primais –, noto a espontânea relação com a natureza, que é a própria poesia – ou própria da poesia.
Alberto Caeiro, considerado o mestre dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa, trata categoricamente do natural e da sua aversão ao pensamento crítico, sobretudo da filosofia. Nesse sentido, o pensamento seria um obstáculo para a límpida percepção. O pensamento turvaria o que se pode intuir de modo simples, direto. Alheia-se do real, do sentimento nato, aquele que se atreve a adentrar o campo das ideias. Pensar e sentir são inconciliáveis. Pensar interrompe a fruição. Ver e sentir são os mais orgânicos dos sentidos, em suma. Penso que é um exercício de recobrar a ancestralidade, de Fernando Pessoa.
Alberto Caeiro teria vivido entre os anos de 1889 a 1915, com biografia humilde, principalmente no campo; não se ateve à subjetividade. Consegue-se apreender do poema que, apesar da filosofia intrínseca, Fernando Pessoa buscou apartar-se da modernidade, da subjetividade e, talvez, da metafísica, para retornar à pureza das coisas[1]. O estilo é bucólico, na medida em que tende a acompanhar a oralidade da época, com um fluxo muito espontâneo. O mecanismo poético, portanto, é o contato direto, para dizer o que está à vista, e que se mete nas entranhas, sem obscuridades. É translúcido o contato do poeta com a natureza.
Percebo estreita ligação com a poesia de Manoel de Barros[2], como nos poemas “Os caramujo-flores” e “Uma didática da invenção”, pela afinação no arranjo das palavras. Com Mario Quintana também, o poeta da simplicidade, pela objetividade e pela lucidez dos versos – revela isso no “Poeminho do Contra” e no “Relógio”, por exemplo.
Na prosa contemporânea, a marca da poesia de Alberto Caeiro parece viva e familiar aos textos de Valter Hugo Mãe, além da poética inserta em suas obras; como também, algo mais antigo, do outro lado do Atlântico, à poética e à objetividade de Adolfo Caminha. Inclusive, deve ser lembrado João Guimarães Rosa, poeta do povo, por sua escrita singular, ligada à oralidade e às vivências do campo.
O autor tem a disposição de ultrapassar as complexidades, para penetrar a essência. Libera-se e entrega-se à imensidão de possibilidades, que passa muitas vezes despercebida, como um passo dado, a contemplação à flor; os atos de renascer e de se redescobrir, que eclodem a cada “esquina”. Rechaça o que detém a sorção de luz pelas retinas.
Alberto Caeiro declara ser o seu olhar nítido como o girassol. Pelo heliotropismo, a flor se guia pela luz; é um movimento irrefletido, à guisa das determinações naturais. Fala em não pensar no mundo: “Pensar é estar doente dos olhos”, porque pensar é complicar e se distanciar do cerne, do núcleo: do coração. Olhar para o mundo e estar de acordo é simplesmente deixar-se fluir (inclusive, o autor se entrega à repetição das palavras, sem adjetivação); não entrar nas minúcias que possam interferir nas ligações naturais, ou seja, permitir-se à contemplação infinita. O mundo, para ele, o alter ego de Fernando Pessoa, é muito além do que pregam; do que programam para robotizar as pessoas.
Quando trata dos sentidos, mormente da visão, fala dos poros abertos; da dinâmica que admite as interações entre sistemas (o corpo e a natureza; o corpo, que é a natureza: indivisíveis). E amar, de tal modo, é a oferta desobrigada, descomprometida; amar é a ingenuidade de não pensar no porvir e nas incertezas de uma vida enformada.
Com essa pretensa crítica, volto à condição primitiva do existir; menos rebuscada, mais direta aos sentidos – uma experiência magnífica, já que tenho a ambição da simplicidade.
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Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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[1] “Aparece a Fernando Pessoa no dia 8 de Março de 1914, de forma aparentemente não planeada, numa altura em que o poeta se debatia com a necessidade de ultrapassar o paúlismo, o subjectivismo e o misticismo. É nesse momento conflituoso que aparece, de rompante, uma voz que se ri desses misticismos, que reage contra o ocultismo, nega o transcendental, defendendo a sinceridade da produção poética, um ser manifestamente apologista da simplicidade, da serenidade e nitidez das coisas, um ser dotado de uma natureza positivo-materialista e que rejeita doutrinas e filosofias”. (Site de poesias coligidas de Fernando Pessoa, on-line).
[2] “Com uma poética da miudeza e da singeleza, narrada a partir do universo do interior, assim se construiu a lírica do criador mato grossense”. (FUKS, Rebeca, on-line).
:: Referências
ARQUIVO PESSOA. Obra édita. Acesso em 22/01/20
FUKS, Rebeca. Manoel de Barros e os seus 10 grandes poemas. Acesso em 22/01/20
LEITE, Carlos Willian. Os 10 melhores poemas de Mario Quintana. Acesso em 22/01/20
RTP Ensina. “O meu olhar é nítido como um girassol”, de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa. Poema de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa dito pelo músico David Fonseca. Acesso em 22/01/20
Site de poesias coligidas de Fernando Pessoa. Acesso em 22/01/20