Coluna | Escritorxs de Quinta
Em frente ao Hotel Mansões, o som do corpo de Thiago contra o asfalto.
No décimo sexto andar da Coronel Marcos Konder, ressoa a cabeça de Amanda contra a parede da sala
Em todo lugar, todo som de vida contra o sólido é vazio.
*
O tum seco invadiu o restaurante em que almoçávamos e que reunia seis mesas entre a varanda e o interior démodé.
Eu e Amanda, separadas do vendaval litorâneo pelas portas de vidro que dividiam o mundo de dentro do mundo de fora.
Dentro: risoto, pescada, Amanda, as famílias de domingo, os garçons vestidos de pinguins, o tilintar dos talheres e, de repente, o barulho surdo no vidro que me cercava à esquerda.
Eu, que já pensei sobre o som da morte, soube: é assim que ela ecoa.
Amanda, na minha frente, levou rápido as mãos à boca e fechou os olhos. Quando os reabriu, o restaurante estático no olhar estático dela.
“O que foi?”, “Um pássaro”, “Morreu?”, “Decerto”.
*
Amanda achava os pássaros altos feios, a anatomia deles. Os olhos esbugalhados um de cada lado da cabeça, o bico duro, longo, maciço e, sobretudo, as patas, os dedos, as garras e como “se mexem estranho” toscas em fineza, firmeza e cuidado.
No enterro de Thiago, observando as garças, ela me contou que as aves são descendentes dos dinossauros. Não sei por que essa informação nessa hora, mas agora olho os pássaros e os assemelho aos lagartos. Olhos os lagartos e os assemelho aos pássaros.
*
Pós-som-no-vidro, nem um pio.
Ao meu lado, a pomba no chão, barriga para cima e esse momento: os olhos tremeram a sutileza mais doce, ligeira e finita que eu já vi e que jamais vou esquecer; um movimento do globo que se volta para cima como quem pretende ver o fundo dos olhos.
Morreu. Diante do impacto, caiu, olhou para dentro, suspirou e morreu.
Tum.
A transparência sólida do vidro é maldade com os pássaros.
*
“Mas quem se importa com as pombas?”, aquela mulher que eu nunca vi antes nem depois me disse em uma das mais de 50 salas de reunião do ostentoso prédio espelhado na Faria Lima.
Tailleur, ar condicionado, iluminação inteligente, décimo andar e a vista límpida do mundo de fora separado do mundo de dentro por esse vidro que deixava o ambiente impecável e a equipe do escritório deprimida, porque ali os pássaros morriam muito.
Entre planilhas, telefonemas e acordos, o barulho dos pássaros que entravam de cabeça no malicioso azul da construção.
Dá dó quando são pequenos, porque ficam grudados no vidro por um minuto, pensam que o espelho é céu, ela disse.
Por fim, desviando o tom fúnebre, sorriu e “mas quem se importa com as pombas, não é mesmo?”.
*
Seguido do som que instaurou o breve luto nos almoçadores do restaurante, veio um garçom-pinguim, descendente dos dinossauros, munido de desdém e uma vassoura. Abriu a porta de vidro e empurrou o corpinho alado para o canteiro lateral. Melhor não ver.
“Como será que os pássaros enxergam?”, pensei.
Google: sem perspectiva.
*
Um mal súbito e o desmaio. Foi pelo som que eu soube que Amanda caiu. Tum. É inconfundível barulho de cabeça contra chão. Oco.
Foi do calor, pressão-baixa. Susto, surpresa, violenta emoção, arriscou o médico. Você é a responsável por ela? Sim, agora sim. Pais? Nope.
Da queda, o maxilar trincado uma semana depois de Thiago se atirar do Mansões.
Amanda emudeceu por 49 dias. Nesse tempo, eu aprendi a falar sozinha, perguntar e responder como a irmã mais velha que me tornei porque o mais velho se estatelou edifício abaixo com a perspectiva de uma pomba.
O som da minha própria voz contra o sólido dos meus irmãos respondeu por 49 dias ao silêncio entre morte e vida que segue. Irmã do meio, afinal. Outra pomba, afinal. Tum.
49 dias e eu aprendi isso: livre associação.
*
Mas quem se importa?
As pessoas frequentemente se referem às pombas como “ratos que voam”.
Eu tive uma rata uma vez, a Maria. Rata mesmo, grande, de laboratório, com rabo e tudo. Morreu na minha mão. Thiago disse que era isso mesmo o que os ratos duravam: pouco.
Foi a primeira morte que eu vi, mas essa não teve som nem os olhos tremeram. Um segundo antes de morrer era Maria. Quando morreu, ficou na casca de pelinhos macios qualquer coisa de vazio.
Tive muito amor pela minha rata. Quando dizem “ratos que voam”, imagino sempre um céu de Marias.
*
“Almoçar fora?”, a primeira pergunta de Amanda quando voltou a falar e comer sem babar.
Três meses depois de Thiago, saímos.
No caminho, Amanda olhou para cima. Reparou: aves leves contra o vento não saem do lugar.
Que bom, porque pesamos, Amanda. Vamos longe. Sorri pequeno, ela também, tum-tum, tum-tum contra o vazio. Seguimos.
_______________________
Vanessa Vascouto é autora do romance Água fria e Areia (Lamparina Luminosa, 2018), da peça teatral A maior distância entre dois pontos (SESI-SP Editora, 2019) e do infantojuvenil A Árvore e a Nãna (finalista do Prêmio Barco A Vapor 2018).