Inspiração x Uso consciente da técnica: existe mesmo essa dicotomia? – Anita Deak

Coluna | Litterae


De um lado, autores que pensam a Literatura no terreno das musas e das súbitas iluminações. De outro, escritores-arquitetos que planejam cada palavra, cada capítulo. Alguns, inclusive, como Umberto Eco, desenham mapas fiéis de cenários importantes de seus livros, na tentativa de não deixar escapar nem um só detalhe, como se à Literatura fosse possível o controle absoluto. E se eu dissesse que ambos caminhos só parecem isolados por uma falsa dicotomia?

Planejamento é diferente de controle absoluto, apesar de muitos autores acreditarem estar 100% no comando de seus livros por que fizeram um esqueleto, por exemplo. Ou por que estão muito cientes de suas escolhas estéticas, relativas à linguagem utilizada, à escolha de narrador e tantos outros fatores. Estabelecer um plano, estudar a função de recursos narrativos é, sim, uma atitude com potencial de tirar o autor da vala comum, e aqui penso em Guimarães Rosa, poliglota, que tinha conhecimento das estruturas sintáticas de inúmeras línguas. Tais conhecimentos foram parar em Grande: Sertão Veredas, inegável. E se Guimarães tivesse apenas contado com as musas? Seria o suficiente para ele chegar no rigor técnico a que chegou?

No entanto, grande habilidade técnica, por sua vez, não dá parto, necessariamente, a um grande romance. Já trabalhei em edição de livros com estruturas impecáveis, às quais faltavam alma e espírito. Não vou me enveredar aqui em abstrações metafísicas, pois o que chamo de alma e espírito têm descrição: a capacidade de vivificar personagens e de colocar na unidade do texto pensamentos que vão além do rame-rame comum das mentes médias. Guimarães não é gigante apenas por causa de sua linguagem, de sua técnica, mas também por causa da profundidade de seus pensamentos em relação à vida e morte, a Deus e o Diabo. Se lhe bastassem as musas, ele não precisaria ter lido filosofia, torcido o pensamento de meia dúzia de gregos para apresentá-los, então, sob luzes literárias, em outro contexto.

O que parece iluminação, muitas vezes pode ser apenas o acúmulo e a epifania de um cruzamento de inúmeras referências, de forma que se tem a impressão de certo capítulo ter saído num jorro, como se pertencesse a um espaço independente do autor. Até acredito, como escritora, no acesso a realidades outras (Carl Jung falava do inconsciente coletivo, por exemplo), mas creio, sobretudo, que mesmo essas realidades outras são mediadas pela nossa psique e balizadas – muitas vezes coagidas – por certos padrões viciados de linguagem aos quais podemos ignorar quando damos vazão, sem tanta acuidade às escolhas técnicas, a essa escrita que acontece apenas no jorro, na intuição, no se deixar levar.

Sim, existem bons livros escritos assim, mas não conheço sequer uma obra-prima que não traga uma reflexão profunda contida na própria estrutura. Se um autor quer chegar ao máximo que pode, ele precisará agradecer as musas e pedir licença para ir ali estudar, rapidinho, depois eu volto. Estudar, não apenas ler. Ler de olho nos recursos técnicos, vou insistir para sempre nessa tecla.

Tendo em mente, por exemplo, o parâmetro técnico de não abusar dos adjetivos o tempo inteiro – deixando-o para quando de fato eles são necessários (traremos trechos de livros e exploraremos a questão em outro texto da coluna) –, a conversa com as musas será uma conversa mais produtiva. A inspiração não chancelará a repetição de escolhas duvidosas e desavisadas e saltará para palavras e estruturas mais criativas, menos contaminadas por caminhos linguístico-emotivos que já estamos acostumados a percorrer. O problema não é a emoção, longe disso. O problema é quando se confunde inspiração/escrita de jorro com liberdade.

Há liberdade absoluta no ato de escrita? Não. Se você quer escrever em língua portuguesa, por mais experimentações formais que seu texto tenha, estará ali reconhecível (assim espero) o idioma e as suas premissas. Você já parte de uma caixa, meu caro. O que seria então uma liberdade possível? Acredito no meio do caminho: tornar-se, pouco ao pouco, um mestre nas possibilidades estruturais da língua sem, por isso, cortar sua criatividade. Já ouvi que o estudo dos recursos técnicos tende a cortar a criatividade, e, sério, livrem-se dessa trincheira discursiva falsa. Aprofunde-se o quanto puder e o conhecimento será seu aliado, jamais seu inimigo. Criatividade e singularidade literária são a ação do conhecimento sobre a intuição ou da intuição sobre o conhecimento. Nem apenas um. Nem apenas outro. Os dois.

Racionalidade pura e tentativa de controle absoluto sobre a forma geram textos em que os conceitos falam mais do que a obra, virando peripécias sem contexto, sem densidade. Por outro lado, apenas o farfalhar das palavras no ouvido não faz com que um autor evolua conscientemente e coloque essas mesmas palavras contra a parede, pois há que se duvidar das intenções das palavras que nos chegam. Muitas delas pertencem a nós, a nossa vida íntima, e só devem ser usadas se servirem também à obra, sobretudo à obra. Deixo, para terminar, palavras de Osman Lins, no livro Guerra Sem Testemunhas, em que o autor do engenhoso romance Avalovara nos fala de seu processo criativo e une as duas pontas sobre as quais discorri aqui:

As modificações, as retificações de rumo decorrem-se às vezes de processos inconscientes, podendo inclusive surgir em sonhos, respondendo a exigências internas da obra, que não podem ser alcançadas a priori pelas limitações da inteligência. Mas perdem seu caráter sobrenatural, acaso o tivessem, quando o autor as submete ao crivo de sua avaliação, só então incluindo-as ou não na obra”.

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Anita Deak é escritora e editora de livros. Nasceu em Belo Horizonte. Seu romance de estreia, Mate-me quando quiser (2014), foi finalista do Prêmio SESC de Literatura e teve os direitos vendidos para o cinema. Lançará, em 2020, o romance No fundo do oceano os animais invisíveis. Dá dicas e fala sobre literatura nos stories e destaques do Instagram