ESCADAS ROLANTES – TAMIRIS VOLCEAN

Mora em mim um complexo de escadas rolantes. Toda vez que me deparo com aquela estrutura metálica silenciosa, titubeio. Diminuo o passo e espero pelo próximo degrau. Um jeito de ter certeza de que vou acompanhar o ritmo. Só depois dos vinte e tantos é que consegui, finalmente, subir de mãos livres. Despreocupada nem pensar. É preciso, ainda, muita evolução espiritual para abandonar o prefixo da desinquietação. Vez em quando, ainda tropeço. Levam-se tão poucas certezas desta vida.

Em Catanduva, cidadela do interior de São Paulo que cresce sem nunca ser notada, só fui conhecer escada rolante na adolescência. Lembro-me de que foi uma festa. A primeira delas brotou em uma loja de roupas populares. Depois da aula, íamos, eu e minhas colegas de escola, até lá. Era um sobe e desce. Imagine só! Àquela época, bastava alguns degraus cheios de vida para sentir frio na barriga. Hoje, só se pensa em voar. Proporções estratosféricas.

Com o passar dos anos, frio na barriga torna-se coisa rara. Difícil de encontrar. Se a vida dos adultos tivesse forma humana, seria, com certeza, um senhor de olhos cansados ao lado de uma mulher apática. Feito aquele casal que sacoleja inerte no vagão lotado do metrô.

Pois bem, o conhecimento tardio das escadas rolantes me deixou insegura. Quando vejo uma criança pisar confiante em um degrau qualquer, sem precisar esperar pelo próximo, logo penso que aquele miúdo nunca saberá o que é viver com o tal complexo. Invejo-o por um segundo. Onde já se viu sentir inveja de criança?, ecoam as vozes sociais.

Ainda hoje, conheci, justamente no percurso do primeiro ao segundo andar, Emma, que nasceu em outra cidadela encoberta pela indiferença. Cabinda. Encaramo-nos e compartilhamos o medo de errar o passo. As pessoas ultrapassaram-nos apressadas. Ficamos estagnadas do lado direito, como prega a cartilha. Bastou um olhar para nos reconhecermos. Tínhamos muito em comum.

Cabinda é uma província que quase escapa aos limites da República de Angola. Colonizada por Portugal, não se rendeu à Língua Portuguesa. Emma tem como língua materna um dialeto do kikongo. Mas, inevitavelmente, conhece uma ou outra palavra do nosso vocabulário. A dominação sempre deixa seus rastros — de saliva e de sangue.

Paridas em solo explorado por portugueses e complexadas diante escadas rolantes. Sorrimos. Essa coisa é imprevisível, ela disse em um francês arrastado. Ao final, já sabia seu nome. Alguns passos depois, sua origem. Estava em Paris para estudar. A primeira da família a encarar o ensino superior. Os pais ainda viviam em uma cubata. Disse em português. Cubata. Só depois é que descobri o que era. Tivera quatro irmãos. Morreram todos. Em Angola, o rio seca sem porquês. Onde está Deus no meio disso tudo? É melhor que não exista, confessou-me. Porque, se existir, então é um filho da puta. Foi fala dela. Falta-me, ainda, a tal evolução espiritual para, além de abandonar prefixos, mandar à merda certas vozes sociais.

No relógio, 16h45 e já escurecera. Lamentei a falta de luz e calor. Ela, que se fundia com o céu preto, riu. As pessoas têm mesmo medo do escuro. E completou: há dias em que eu gostaria de conhecer a imprevisibilidade das pessoas, tal qual a das escadas rolantes. Comigo, são sempre tão previsíveis. Diminuem o passo, quando me veem. Em Cabinda, sou considerada rebelde. Aqui, bambeio diante de um punhado de degraus. Quase não existo.

Por que não mostra sua coragem para além das fronteiras de Cabinda?, perguntei. Mas, no fundo, sabia a resposta. A minha cor permitia certas rebeliões, a dela não. Ela apenas sorriu. Foi um prazer, despediu-se.

Quem mora em cidade grande desde o primeiro choro nunca conhecerá essa insegurança, fruto do conhecimento tardio das novidades. O Outro é um amontoado de complexos que nos falta imaginar.

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Tamiris Volcean
nasceu em Catanduva, interior de São Paulo. Jornalista, mestre em Comunicação e, atualmente, doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. É autora do livro de crônicas As pessoas que matamos ao longo da vida, publicado pela Editora Reformatório. Gosta de uma prosa.