MONTAGEM DE SENSAÇÕES QUE ESMIÚÇA O CAOS DISCURSIVO – WLADIMIR CAZÉ

Epistolário e livro de viagens, “Na capital sul-americana do porco light”, de Catarina Lins (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2018), é composto por dez escritos que provocam movimentos de leitura em muitas direções, na medida em que sua poética intenta traçar linhas imaginárias entre certos objetos e delimitar território onde tudo entrará como parte do poema: “Meridiano: […] ligação […] encontro entre heterogêneos.” (p. 14). O poema é um navio que, ao encalhar em meio a detritos na corrente da linguagem, pode, justamente nesse impasse, encontrar o silêncio, o sentido: “[…] não havendo / calado / isto demarcava, sim, o silêncio / nos poemas endereçados / às geleiras” (p. 16).

Catarina organiza seus textos com formas recolhidas: cartas, e-mails, perguntas, trechos de verbetes enciclopédicos, citações (identificadas ou não), sonhos, listas, lembranças, aproximando deserto e oceano, incêndio e baixas temperaturas, presença e ausência, o eu e o outro (“encontro intenso”, p. 22) e o eu consigo mesmo. Todos os textos do livro interpelam um interlocutor ou interlocutora, que varia de uma amiga ou do próprio eu do poema a um amor, a poeta Hilda Hilst, a alguém da família que é bem mais velho, a outro mais novo, ou, ainda, a outros indeterminados (o/a leitor/a?).

Certa nostalgia derivada da falta de uma dimensão temporal mais densa é compensada pelos deslocamentos físicos reiterados e representada de maneira fragmentária, na taquicardia da comunicação instantânea contemporânea. Como pano de fundo ouve-se a evocação a) de uma cidade não especificada que “ainda está em guerra”, mas na qual “as casas […] // […] // são onde duas ou três coisas importantes / ainda acontecem” (p. 45) – cidade que talvez seja o local da escrita posterior, em poemas, da experiência estrangeira –, b) da cidade da infância (em que “crianças / […] brincavam ao redor do mundo / nos túneis, jardins, / nos monumentos da guerra” (p. 37) ou c) do turismo num centro de São Paulo com “acampamentos em volta” (p. 59); mas essas alusões a uma realidade por vezes incômoda são como vestígios de perturbações que se passam a certa distância, não somente no espaço mas também no tempo (a letra “H.” com prudência substitui a menção ao chamado “holocausto” da segunda grande guerra do século passado).

É interessante observar como o uso das aspas, entre outros recursos presentes nesse livro, com frequência produz uma ironia relacionada com alguma ideia já enunciada num poema anterior: da “Arte” (sem aspas e em caixa alta, p. 9) para “a grande arte” (entre aspas e em caixa baixa, p. 60), da “História” (sem aspas e em caixa alta, p. 48) para uma “historicidade” (entre aspas, em caixa baixa e em itálico, p. 53). O estilo da poeta atinge resultado mais intenso e coeso em “O poema demora” ou no díptico “Para que servem as manhãs se não para isto?” e “Empédocles” (os dois últimos, ligados pela mesma reflexão sobre por que “no mundo dos sons, / […] manter a continuidade”, ps. 43-44 e 47) – nesses três textos, sua escritura opera um trabalho de montagem de sensações que, demiurgicamente, esmiúça o caos discursivo, “separando tudo: sonho, água, devaneio / loucura e olhos” (p. 49).

Título: Na capital sul-americana do porco light
Autora: Catarina Lins
Editora: 7 Letras
Número de páginas: 64

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Wladimir Cazé nasceu em Petrolina (PE), passou por São Paulo (SP) e viveu muitos anos em Salvador (BA). Mora em Vitória (ES) desde 2009. É graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela UFBA e mestre em Letras pela UFES e doutorando nesta mesma universidade, com pesquisa sobre tradução literária. Com Rafael dos Prazeres, traduziu “O assassino de porcos”, de Luciano Lamberti (Cousa, 2017). Antes de “Minividas” (2018), publicou os livros de poemas “Microafetos” (2005) e “Macromundo” (2010), além de folhetos de literatura de cordel.