Coluna | Litterae
Estamos presos em casa. Isolados. Acuados pelo coronavírus. Tenho sentido certa angústia quando vejo em minha estante a tetralogia da Elena Ferrante. Dizem que ela é tradutora e também se chama Anita. Sem saber sua identidade, torço para que esteja bem na Itália sitiada, vazia, as janelas abertas ao fim do dia anunciando Bella Ciao. Ou que, resguardada em sua casa, mais especificamente na biblioteca que imaginei pra ela, escreva – exatamente agora, enquanto você lê esse texto – o próximo livro que teremos o prazer de apreciar.
Tenho o hábito de ficar em casa. Preguiça de rua, de conversas desinteressantes, portanto não me é custosa a quarentena. Sinto falta dos cafés semanais com meu amigo Evandro Affonso Ferreira, de escutar o Léo Lama comentar o que ele espera dos próximos episódios do meu novo podcast de Literatura, o Litterae, mas os afetos, esses, tantos outros, como diz o psicanalista J. -D. Nasio, em O Livro da Dor e do Amor, são construções internas.
Penso que gostamos, na verdade, não das pessoas em si, já que elas são inapreensíveis, mas das construções fictícias que fazemos delas. A teoria de J. -D. Nasio é essa: não existe relacionamento sem fantasia, o que torna todo ser humano uma espécie de ficcionista em relação ao outro. Não é bonito? Freud já dizia que na cama de um casal, por exemplo, sempre existem seis pessoas: os amantes e os dois pais de cada um. De forma que olho agora para a Graziela Brum, amiga escritora que está passando uns dias em casa, e me pergunto quantas partes ela tem do meu passado, quiçá do meu futuro.
Os livros nas estantes X aqueles que li: observo os títulos enquanto tomo um café e reflito sobre a curiosa duplicidade. O mesmo título, físico, impresso, torna-se outro quando, na leitura, o contamino com fantasias internas. Leituras enviesadas, recortadas. Subjetividades. Existe o livro da estante e o livro interno – e o que sobrevive do último depende da memória falha, tensa, vulnerável. Qual a distância entre o Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa e o meu? E o ponto de contato entre um autor e um leitor? A esquina do rio em que encontrei Rosa é a mesma que o fez encontrar-se com a Grazi?
O autor não é o único ficcionista. Construí Riobaldo da costela fantasma de meu pai. Não o que vive em corpo físico, aos 73 anos lá no interior de Minas Gerais, a quem mando mensagem pedindo que se proteja do coronavírus. Falo do meu pai interno, o fantasiado, o fictício (nem por isso menos real). Ele se lança sobre Riobaldo como um coronalitterus.
Se não houvesse uma representação interna de tudo o que tocamos – nesse tempo agora sem abraços – por fora o mundo seria oco. Então meu pai abraça Riobaldo quantas vezes as releituras, se lança em seu cavalo, e nesse mundo de duplos, Elenas e Anitas, coronavírus e coronalitterus, ao menos há muito o que ler nas entrelinhas fantasiadas das estantes.
_______________________
Anita Deak é escritora e editora de livros. Nasceu em Belo Horizonte. Seu romance de estreia, Mate-me quando quiser (2014), foi finalista do Prêmio SESC de Literatura e teve os direitos vendidos para o cinema. Lançará, em 2020, o romance No fundo do oceano os animais invisíveis. Dá dicas e fala sobre literatura nos stories e destaques do Instagram