BRASIL – JOÃO PAULO PARISIO

As coisas são danadas pra acontecer. Era um daqueles dias em que só os joelhos crepitam. O resto é cinzas. Se era domingo? Já dei a dica, amizade. Quarta-feira de Cinzas. Saí só pra desopilar só, peguei um ônibus qualquer, só pra rodar pela cidade, só. Não tem uns crepúsculos aqui em Recife que parece que a cidade tá pegando fogo ou refletindo o inferno, como fosse uma Fata Morgana do inferno aqui em cima, no nível das coisas terrestres? Pronto.

Nessa hora as pessoas começaram a se descabelar dentro do ônibus, uma mulher viu o sol se pondo entre dois prédios envidraçados e disse que era a lua vermelha, o fim dos tempos, falou em mármore do inferno. Um inferno, um inferno. Não era isso. Sabe aqueles postes elétricos em forma de T, bem altos? Pronto. O ônibus parou. Até o motorista desceu pra olhar.

Tinha um cara lá no alto, crucificado no poste. Até um suporte para os pés o poste tinha no lugar certo, como aparece nos filmes da Semana Santa, e os pés estavam daquele jeito, juntinhos, meio um em cima do outro, as pernas meio dobradas, meio de ladinho. A coroa era de arame farpado. Isso a essa hora, no meio desse incêndio em que a tarde morre. Pessoas se benzendo. Sobretudo pessoas tirando foto, filmando. O hábito era tão grande que eu tinha pegado minha máquina antes de sair. Tirei umas fotos também, mas não era pra postar nas redes. Percebi uns detalhes, dei uns zoons marotos. Olhando as fotos, mais tarde, vi que o nosso Jesus era moreno, cabelos cacheados, um bigode ralo, barba dos dias de carnaval, a barriga um pouco saliente, um short amarelo desbotado daqueles com lascõezinhos nas laterais, frisos pretos, o dedão do pé afastado dos demais de quem usa havaianas, uma unheira. Parecia ir passando dos quarenta, mas podia ser um cidadão de trinta e três gasto de sol, cachaça e exploração.

Quem ia descer ele da cruz e dar sepultura? Quem era? Quem tinha crucificado? Como? Usando que ferramentas, que armas? Lembrei de um jogo de tabuleiro, não era Detetive não, era Scotland Yard. Era muito massa. As perguntas vinham assim:

a) o assassino

b) o motivo

c) a arma

E por aí ia. Quando se mexeu na cruz todo mundo se assustou e recuou como se ele tivesse ressuscitado. E gemeu. Não entendi se o que ele falou foi bem “Ai…” ou “Pai…”, mas como doeu. Sangue de Cristo. Paixão de Cristo. Compaixão de Cristo. Essa palavra, nunca entendi tão bem. Ele se remexeu lento como minha avó no leito de hospital depois de meses presa a ele, pregada ali.

Reparei, e não fui o primeiro, que ele não estava pregado na cruz, ou melhor, não fora fixado ao poste com pregos. O poste era duro. Estava amarrado pelos pulsos e tornozelos com cabos elétricos (lembrei de uma namorada música, musicista que diz, que usava os fios dos fones de ouvido como uma pulseira) e fora com o metal dos fios, não com arame, que tinham feito a coroa de espinhos do condenado, por sua vez ligada à fiação geral. A coroa era um capacete de eletrocussão.

Quem te botou aí, filho de Deus?, Tem que tirar ele daí, Quem vai se arriscar?, Chama o bombeiro, Chama o Samu, Chama a Celpe, Bota uma escada. Dali a pouco a iluminação pública ia ser acionada. O homem respirava, a cabeça pendida. Se pelo menos ele morresse, se acabaria o dilema. O impasse. Sua ainda vida nos impunha uma obrigação moral. Lembrei dos filmes de cadeira elétrica. Parece que botavam uma bucha molhada na boca do condenado, pra ele morder enquanto tomava o choque. Ou era dentro do capacete. Isso atenuava o sofrimento e o espetáculo.

Quando eu vi que ia chorar fiquei com vergonha, mas ouvi foi gente chorando ao meu redor. Chorando e rezando, entoando até. O homem tentou falar de novo. Esboçou palavras. Mastigava-as. Ele tá pedindo água, Bota água pra ele, Como é que vai fazer? Ninguém sabe há quanto tempo ele tá aí. Houve uma movimentação, apareceu uma vara comprida dessas de colher manga, daquelas com uma garrafa pet cortada na extremidade fazendo as vezes de cumbuca ou colhedeira. De fato estava na época da segunda frutificação anual das mangueiras. Já haviam aparecido vendedores de água e cerveja. Um deles abriu uma mineral gelada e entornou na cuia de plástico, inclinada. Um homem fibroso ergueu o pau, equilibrado, conduziu-o até a cruz. A multidão se abria, em cadência de procissão. O crucificado curvou o rosto sobre o Santo Graal, o homem fibroso, um catador de papelão que abandonara sua carroça ao ver a cena, manejou o pau com tamanha habilidade, candura, que aconchegou-o melhor à boca do mártir, e ele bebeu. Falou de novo. Com a boca umedecida, fez-se entender. O pau desceu de novo, a cuia. O estalar do abrir de uma lata de cerveja, o gorgolejar espumoso do líquido dourado. O pau subiu de novo, o homem fibroso suado, o crucificado bebeu com sofreguidão redobrada. Agradeceu. Quer mais? O pau subiu e desceu.

O crucificado começou a cantar. A multidão pôs-se a cantar, parte hinos de carnaval, parte hinos religiosos, no mormaço do começo da noite de março, auge do verão nordestino, rescaldo daquele carnaval em que eu pensei que não veria mais ninguém fantasiado de Jesus. Qual era o significado? Qual a alegoria? Imaginei os vídeos que iam ser postados no perfil do @recifemacabro. Como ia viralizar. Ouvi pregões, vi acima das cabeças flutuarem placas de anúncios escritos a mão. Três latões a dez. Pessoas fantasiadas, ar de egressas que tinham entrado ou saído por um buraco de coelho e encontrado o programa ideal. Flores do acaso.

A temperatura deve ter subido mais uns dez graus, o calor humano, o rebanho, a manada. A humanada. A pressão. Um bloco. Ouvi o som de metais. Um frevo ainda ao longe, emendado com as sirenes que começaram. Ambulâncias, uiuiuiuiuiu, abrindo caminho em meio ao trânsito do Recife, que já é um dos piores do Brasil. Imagine como tava naquele dia, naquela hora. Como os hebreus atravessando o mar Vermelho. Porque eu não acho que o mar Vermelho abriu de boa vontade, não. Me empurravam de todo lado. Todos queriam um lugar privilegiado. Todos queriam se acomodar. Bota uma peixeira na ponta dessa vara e corta os fios. Lá foi o homem fibroso, a faca no lugar da cuia, amarrada. Cortou um fio, cortou outros mais. Vários raios de cobre ligavam a cabeça do crucificado à fiação pública. Foram-se todos. Houve um levante, um suspiro, um aliviaço. Iam todos pro céu. Uiuiuiuiuiu, panranamnamnamnamnam!

As luzes dos postes se acenderam. O crucificado deu um solavanco, ficou em arco doloroso como uma pessoa no fim do tétano, abriu os olhos. Entendi o que São Francisco de Assis sentiu quando a imagem de Cristo abriu os olhos para ele durante uma missa. O corpo se acendeu como uma lâmpada incandescente. O Jesus do livro do Apocalipse tem olhos em brasa, esse, brasileiro, tinha o corpo inteiro. De seu tronco correu a seiva, o pigmento indelével fornecido por esse pau-brasil que os franceses chamam de pernambouc, tão apreciado no além-mar para o tingimento de tecidos de alta fatura.

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João Paulo Parisio 
(Instagram / Site) é autor de Homens e outros animais fabulosos, Esculturas fluidas e Legião anônima. A Peleja do intrépido Eusébio Encarnado com o Fantasma de Branca Dias é o quinto canto de A Águia e o Fígado, um longo poema narrativo.