PARCIALMENTE ENCOBERTO – MAURO PAZ

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Mauro Paz 

Em 2010, eu já morava em São Paulo. Quando viajava para Porto Alegre, ficava nos meus pais, na Cidade Baixa. Para quem não conhece, a Cidade Baixa é um bairro boêmio. No inverno, porém, quando a temperatura vai próxima de zero e o relógio avança as três horas da manhã, as ruas da Cidade Baixa ficam desertas. Numa dessas noites, bebi algumas taças com meus amigos. Retornei para casa sozinho. Enquanto caminhava contra o vento gelado, pensei o quão estranho seria acordar e encontrar a Cidade Baixa deserta. Então escrevi o conto Parcialmente Encoberto. Nesses tempos de isolamento social, o conto veio bater na minha memória. Compartilho abaixo com vocês:

*

Felipe acordou. Era o dia em que completava quarenta anos e a tigela de cereal não estava na mesa de cabeceira. No rádio-relógio, dez e vinte e cinco. A televisão, ainda ligada, chuviscava. Sobre a mesa do computador, camisetas emboladas, revistas, um pacote de salgadinhos de cebola e farelos. Dona Célia jamais deixaria o filho acordar com o quarto naquela condição. Felipe coçou a virilha direita na emenda com o saco, onde cultivava uma micose. Cheirou a mão e espreguiçou. Dando sequência ao prolongamento do braço, puxou a fita da persiana à sua esquerda. Entre as antenas dos prédios, o céu nublado, carregado, abafando ainda mais o dia de verão.

– Mãe, meu lanche – gritou.

Nada. Deve ter ido ao supermercado, pensou. No dia do aniversário de Felipe, o prato preferido, filé com fritas, não poderia faltar. Todo início de janeiro, Dona Célia reservava uma parte da modesta aposentadoria para esse agrado. No entanto, era estranho que a mãe se esquecesse do cereal. Levantou. Vestiu o calção de futebol jogado junto aos tênis. O elástico cansado deixava amostra o cofrinho. Fazia anos que Felipe não jogava bola. A peça era recordação dos tempos de colégio. Para maior conforto, devido ao peso adquirido nos anos de ócio, Felipe cortara a sunga interna do calção. No espelho do banheiro, examinou a barba de três dias. Prendeu o cabelo e lavou o rosto. Úmida, a toalha felpuda tinha marcas de dedos e cheiro de cachorro molhado. Absurdo! Precisava ser trocada diariamente. No caminho para cozinha, percebeu a porta do apartamento aberta. Encostou. Na cozinha, pratos usados, restos nas panelas e louça por lavar. Com o umbigo roçando na borda da pia, procurava um copo semi-limpo.

– Dona Célia, Dona Célia, depois de velha deu para ficar relaxada – resmungou.

Enxaguou o copo com um resto de chocolate em pó no fundo. Na geladeira, só a garrafa d’àgua. Bebeu direto no bico. Revirou a dispensa, sem sucesso. Levou a garrafa para o quarto. Logo a mãe chegaria com o almoço. Sintonizou a televisão no canal auxiliar. Ligou o vídeo game. Tinha duas semanas que empacara na última fase do jogo de estratégia. Cada fase, um grande império da antiguidade. Por último, os malditos romanos. Precisava tomar as cidades com o exército bárbaro. No entanto, as legiões organizavam-se, defendiam e atacavam em blocos. Talvez se conhecesse um pouco de história, seria mais fácil. O tempo voou em frente ao jogo. Três da tarde e nada da mãe, nada de almoço. O estômago grunhia. Vestiu a primeira camiseta do monte junto ao computador e saiu decidido a encontrar Dona Célia. O elevador abriu. A recepção do prédio vazia. O rádio do porteiro, ao invés da música evangélica, emitia um constante chiado. Na rua, nenhum carro, ônibus ou pedestre. A tabacaria com a cortina de ferro baixa. Desceu dois quarteirões. Ao cruzar a pequena praça, nada de pombas, crianças ou táxis no ponto, o mais movimentado do centro. As portas do supermercado estavam abertas, porém as luzes apagadas e os caixas vazios.

– Tem alguém aí? Mãe, estou aqui fora.

O eco retornou sozinho pelo meio das estantes. Felipe entrou. No escuro, cuidava o chão, com medo de esbarrar em algum rato. O açougue ficava no fundo, à direita. Ninguém. Pendurado no forro, o móbile girava exibindo as ofertas do dia. Felipe voltou pelo corredor dos chocolates. Pegou uma barra e um pacote de biscoitos recheados. Antes de sair, retirou do freezer, ao lado de um dos caixas, uma lata de refrigerante e guardou os mantimentos na sacola plástica com a marca do supermercado estampada. Caminhou até a praça. Escolheu o mesmo banco do qual Dona Célia assistia-o jogar bola quando menino. Abriu o biscoito, o refrigerante. A mãe se encantava com a desenvoltura do filho. Comentava com as amigas que um dia o veriam brilhar no futebol estrangeiro. O lanche terminou rápido. Levantou. Andando uns sete quarteirões, chegaria ao apartamento de Leonardo, o único amigo que não o condenava por nunca ter trabalhado. O céu nublado agravava o cinza dos prédios. Pelas ruas estreitas do centro, só o vento acompanhava Felipe soprando pedaços de papel, poeira e palavras incompreensíveis ao ouvido. Àquela altura do caminho, o calor fez do chocolate uma pasta que ficou pela lixeira em frente ao prédio de Leonardo. Tocou o interfone. Repetiu. Repetiu sete vezes. Nada. Espiou por entre as grades. A recepção vazia. A mão serrada fez estrondo na porta. A testa a acompanhou por sete vezes. Decidiu voltar. Contava as baganas de cigarro na calçada quando percebeu os primeiros pingos. Dois quarteirões adiante, a chuva apertou. Correr era inútil. Entrou encharcado. Tirou a camiseta e torceu sobre o xaxim da samambaia que ornava o hall. O elevador subiu até o último andar. Pela escada auxiliar alcançou o terraço do prédio. Relâmpagos. A cidade turva. No morro distante, raios castigavam as antenas transmissoras. Chegou ao parapeito. A água varria o asfalto, corria rente ao meio-fio. Nos primeiros metros de queda, viu os carros, a multidão e que fazia um lindo dia de sol.

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Mauro Paz
 nasceu em Porto Alegre. Desde 2009, vive em São Paulo. É autor dos livros Por Razões Desconhecidas (IELRS, 2012), finalista do Prêmio SESC de 2012; São Paulo – CidadExpressa (Editora Patuá, 2015); e Entre Lembrar e Esquecer (Editora Patuá, 2017) finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018. Mauro também é organizador da antologia Contos de Quarentena (Independente, 2020), que reúne alguns dos principais contistas da literatura contemporânea brasileira.

OBS.: Conto publicado no livro Por Razões Desconhecidas