DOIS CONTOS DE AMOR – PAULO SALVETTI

A cantora que acordou surda

Parecia um sonho continuado, mas mudo. Abriu os olhos em estado de tontura.  Cortina arrastada, depois a janela, sem ruído. Escovou os dentes num automático de não saber como a pasta parou na escova. Escolheu um disco pra iniciar o dia. Sempre música nas manhãs. Menos se o humor estivesse precário. Raro. Mais comum era Nina Simone, sempre no lado B do vinil. Não ouviu. Julgou ser o aparelho. Checou a agulha e constatou: quebrada. Procurou no celular o mesmo disco, insistente na sequência de faixas. Deu play. Só o zumbido de sua cabeça em operação lenta. Atentou-se. Sentia o aparelho vibrar. Música é matéria, pensou, o dedo sobre o falante. Saía algo dali, o quê? Procurou o fone de ouvido na casa revirada.

Na noite anterior, chegou alcoolizada após encontro com Júlio. Há anos planejavam. Tocavam juntos volta e meia. Ele baixista. Ela costumava se apaixonar pelos tocadores. Se excitava em imaginar a habilidade dos dedos em suas cordas. Ele era tímido demais e ela gosta de receber convites. Ela iria se casar. Com Pedro, bancário. O conhecera na escola, frequentaram a igreja juntos. Ele sempre quis namorar, noivar e casar. Ela achava cafona. Com trinta e três anos, decidiu ser mãe. Um dia ligou pra Pedro, beberam juntos em seguida do show num gueto de jazz. Transaram e foi gostoso. Decidiu-se. Queria ser mais que cantora, mais que mulher, mãe.

Antes precisava resolver pendências. Júlio era uma delas. Único problema dele: odiava crianças. Já na cama, os dentes escuros dos vinhos engolidos sem parcimônia, contou, casaria em um mês. Ele brochou. Tentaram driblar sem sucesso. Ela nua, roupas espalhadas pelo motel. Ele com as carnes mortas. Me toca, ela pediu. Como um baixo em jam. Gozou rápido e partiram. Ela preferiu pedir um táxi sozinha, mais seguro.  No caminho, comprou cervejas. O comemorar ainda por vir. Foi pra casa. Tirou os sapatos e a roupa. Fez tudo no mais profundo silêncio possível. Deitou-se sem beber as doses à disposição. Sem banho também para poder manter os cheiros da liberdade em despedida.

Havia algo ali. Silêncio composto de murmúrios de dentro de si. Agudos no limite de estourar tímpanos. Silêncio da morte de algo. Morriam coisas ali, ela teria constatado não tivesse se deixado levar pelo sono adentrado. Dormia sorrindo.

Achou o fone enrolado na calcinha guardada na bolsa como souvenir.

Acoplados nas orelhas e a música não soou. Ligou pra Júlio. Via a ligação em andamento no celular e nada de ouvi-la. Começou a revirar os objetos num rompante de criar barulhos para tudo responder mudo. Os copos estilhaçados, a cidade diante da janela, os chutes na parede. Absolutamente silencioso. Só o turbilhão de vozes povoando a sua cabeça por dentro sem nada reverberar no externo do corpo.

Olhou a casa em desordem. Deitou-se no sofá. Estava surda. Dedos estalados próximos aos ouvidos e nada. Seria temporário? Há quanto tempo havia acordado? E o casamento? Como poderia se casar sendo surda? Como cantaria na cerimônia? Como ouviria e consentiria o sim? Como fecundaria em pleno silêncio? Como daria à luz sem ouvir o choro? Como educaria os filhos sem escutar os pedidos?

Abriu os olhos sem distinguir o real daquele estado. Tentava se acalmar nas ideias, mas os impulsos do corpo não. Buscou um cigarro e foi até a janela. Desenhos de fumaça a reconduzir concentração. Olhava sem ver o de fora.

Ela ainda sentia os dedos de Júlio vibrando no profundo da pele. Ele a havia tocado como um baixo. O orgasmo mais vibrante dos últimos tempos. Talvez o mais intenso da vida. O silêncio de ouvir-se a si sobre todas as coisas. Ela o amava. Não. Ela amava imaginar os dedos dele percorrendo a derme. Poderia passar a vida em silêncio, sentindo apenas os dedos de Júlio.

Não se casaria. Não mais. Preferia ser um baixo de cordas vibrantes. Sem agudos. Ainda sabia falar? Da sua boca sairia alguma voz? Precisava avisar Pedro.

Estou surda e não mais me casarei. Seria suficiente? Se treinasse a voz, com a lembrança, saberia articular. Sempre foi prolixa ao expor desejos. Dessa vez precisaria escolher as palavras. Poderia mandar uma mensagem, eu não te amo e, mesmo que ele argumentasse com aquelas problematizações, ela não ouviria. Não mais. Era surda.

 

***

 

Jogos perigosos

para Leonilson

Não me venha dizer que ganhou. Não enquanto ainda tenho tanto. Esses muros erguidos entre nós para subtrair pontes são de matéria tão orgânica quanto a nossa e, se estão sujeitos à putrefação como nossas carnes estão, fazem também o sangue correr, ainda que. Eu me lembro da sua primeira vez aqui sozinho, sem eu precisar te buscar. De óculos escuros, mochila, jeans e capacete na mão para proteger da moto comprada sem atender aos meus protestos. Eu te dizia do meu medo da morte: em moto, o risco fica em carne viva. Você riu da minha cara, com aquele ar de deboche que não irrita ninguém, e tirou da mochila o vinho comprado na promoção, mesmo sabendo do meu costume de te servir portugueses ou chilenos escolhidos a dedo. A gente bebeu e riu e rolou no tapete fumando cigarros até lotar cinzeiros, depois com as cinzas espalhadas pela casa por causa do vento entrando pela porta da sacada que esquecemos aberta quando fomos pro quarto. Em tantas outras madrugadas, a gente saiu por aí alucinando sobre a moto, eu sempre com o capacete. Você me emprestava por imaginar que, se caíssemos, eu machucaria o mais importante em mim. A gente cantava junto com o vento na cara gritando as letras do Arcade Fire com aquele seu sotaque estranho. Tinha sido o primeiro disco, no primeiro encontro, e você fez questão de me mostrar três das músicas na sua playlist do Spotify da semana, tínhamos tudo a ver. Um dia seus jeans ficaram em casa porque você quis ir embora com meus shorts pra cima do joelho, achando engraçado, e quando vestiu ficou melhor em você por causa de suas pernas delineadas por um futebol nunca jogado por mim. Mesmo quando falávamos de política e meus ânimos se alteravam diante da sua falta de consciência dialética, você me beijava, pra me calar, fazendo eu me sentir mais importante do que estava acostumado.

Não me venha dizer agora que eu perdi. Eu tenho ainda sua calça surrada guardada entre as minhas e a olho sempre ao abrir o guarda-roupa. Mesmo sem nunca ter tido coragem de sair com ela por aí, porque eu lavei com amaciante antes de guardar e quis preservar o cheiro do presente para quando você voltasse e pudesse usá-la, às vezes eu a visto só para notar o quanto sobra espaço da falta de suas coxas nela. E não é só isso.  Eu tenho muito mais guardado em mim. Tenho as pontes dos percursos desde o dia em que fui te buscar na Praça da República e você entrou no meu carro comentando não estar acostumado com hábitos burgueses de carro importado e perfume durando a noite toda. Tenho até o isqueiro encerrado dos tantos cigarros tragados enquanto tentava ligar incansavelmente no seu número desligado, não sei se roubado, ou arremessado num bueiro depois daquele dia que eu disse eu te amo em tão pouco tempo. Talvez eu não devesse ter dito nada, mas eu estava numa fase da terapia de ser transparente com meus impulsos. Naquele dia você me beijou temeroso e fez amor comigo com um cuidado que você nunca tinha tido antes e eu sabia não ser o habitual dos dias consecutivos rindo contigo. Talvez você não gostasse de pensar em amor, mas a linguagem é um jogo no qual nem todos os sentidos são controlados e nem se explicam com a completude da projeção. Eu nunca soube nem a sua rua. Quando eu te deixava no centro, era sempre perto de algum outro lugar, nunca sua casa.

Não me venha dizer que é um jogo encerrado, porque para acabar um jogo alguém precisa ganhar. Eu não sei quem. Apesar de, esses dias, ter lido que nos jogos cooperativos a emoção do jogar suplanta qualquer princípio de vitória. Talvez o nosso tenha sido um desses. Embora eu quisesse ganhar você só pra mim. Para tê-lo guardado, quem sabe, dentro de sua calça jeans perfumada do coco e das amêndoas do amaciante. Quis ser sincero, quase nunca fui, sobre o que em mim transborda. Ganhei com isso, acho. Um ganhar imerso na falta. Serve de quê? Também te perdi assim. A não ser quê.

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Paulo Salvetti é ator, educador e escritor. Foi um dos selecionados pelo Edital de Publicação de Autores Estreantes da Prefeitura de São Paulo, por meio do qual publicou o romance Cara Marfiza, (Reformatório, 2019). Junto com a escritora Anita Deak, apresenta o podcast Litterae, com diálogos sobre processos de criação literária.