Uma resenha do romance Cara Marfiza, de Paulo Salvetti
Há um vazio que se espalha ao ler este livro. De fora para dentro, vai devorando a gente até consumir o que temos e por no lugar um amargo preto e branco que, no fim, deixa apenas um sentimento: a paz pela qual lutamos jamais será conquistada.
É um livro sobre amargura, sobre ser deslocado e sobre culpa. Há um retrocesso entre o sentimento de vida que vai aos poucos se esvaindo quando a deixamos seguir sem nós e o sentimento de altruísmo, talvez amor, que fazemos inveja por não conseguirmos entender ou absorver. Esse retrocesso é onde habita o medo, a raiva e a angústia, nesse abscesso da vida no qual muitas vezes nos encaixamos no intuito de não sofrer sem saber que o sofrimento entra por qualquer fresta ou rachadura sendo até capaz de penetrar mesmo ambientes hermeticamente fechados como nós quando nos fechamos para a vida.
Através dos olhos da narradora sem nome (grande sacada, pois ela pode ser qualquer um, não-pessoa, uma consciência apenas), conhecemos a história de sua vida e de sua relação com a irmã que empresta nome ao livro. Durante a narrativa, somos embalados ora mais para o lado da narradora, ora para o lado de sua irmã, não há um consenso de quem estaria com a razão mesmo porque a razão é algo tão subjetivo, tão único, talvez por isso sempre achemos que a temos.
Os caminhos das irmãs estão separados desde sempre, nêmesis gerada na inveja das premonições que acaricia apenas uma delas e, no trauma cromático que as separa, enquanto uma é forçada a enxergar o mundo com todas as cores, tons e nuances e sentir essa paleta ir descolorindo com o passar do tempo que prefere ignorar, a outra segue na vida em preto e branco, mas capaz de perceber muito melhor as diferentes cores já que não depende do engano dos olhos para percebê-las.
As cores permeiam o livro como substâncias que levam ao engano, ao erro, são armadilhas que prendem e não deixam mais sair e talvez apenas as bênçãos que vêm de algum lugar desconhecido sejam capazes de desfazer esse mal. Mas como lidar com bênçãos quando só fazemos reconhecer a maldade e amargor que vai se apossando de nós conforme a vida passa e cria raízes na realidade?
Talvez o divino seja esse item a jamais ser alcançado ou sentido, talvez Marfiza fosse um tipo de anjo existente apenas na cabeça da irmã ou algum tipo de alter ego no qual ela despejava toda sua frustração pela vida cega que lhe roubou todas as cores. Quando fica muito difícil lidar com as escolhas que fizemos e fazemos, não seria mais simples criar uma entidade irmã para podermos desovar, nela, toda nossa raiva, infelicidade e sentimentos que não desejamos lidar?
Há uma dualidade presente no livro que nos leva quase a crer nisso, como se uma relação simbiótica entre as irmãs fosse a única maneira possível de elas coexistirem, a morte de uma seria a morte de ambas e a vida harmônica seria insuportável para aquela que criou o mito e não consegue mais suportar a divindade que lhe emprestou, a vida própria que ele adquiriu.
Nesse contexto, podemos dizer que uma irmã era a cópia em negativo da outra, aquele reflexo no espelho dotado de um tipo de cacoete a nos causar desconforto e fazer pensar quem de fato é o reflexo e quem é a pessoa que o está criando. Há um espelhamento entre as duas, lados opostos que se tocam, mas que jamais seriam unos, talvez próximos, nunca juntos. Quanto mais uma mirar o reflexo da outra nesse espelho, mais pavorosa lhe parecerá a imagem e o melhor é tomar distância e guardar a imagem como algum tipo de lembrança desagradável que perseguirá pelo resto da vida.
Não há redenção em ‘Cara Marfiza,’, apenas aceitação, conformismo, resignação, um tipo de paz adquirida ao tomar ciência de que não podemos mudar tudo quanto gostaríamos e de que aceitar é uma benção guardada aos puros de coração, os quais aceitam sua missão terrena com graça e, por que não dizer, amargor sereno.
Não há laços refeitos, nem paz ou reconciliação. Aceitar um ao outro como somos e amar esse aceite como leve e divino é o que nos faz humanos. Muitos de nós passaremos pela vida vendo todas as cores e sendo esmagados por elas, outros verão apenas alguns matizes, alguns não verão cor alguma e alguns verão além das cores. Não há desgraça que não possa ser partilhada enquanto a alegria e o júbilo são por si inerentes ao egoísmo. São as cores que levamos na vida, a paleta está em nossas mãos, o quadro a ser pintado vai depender de nós mesmos.
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Cara Marfiza, de Paulo Salvetti, (Editora Reformatório, 259 págs.), pode ser adquirido na página da Editora Reformatório. A capa é da Lisa Mangussi.
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Alexandre Willer é autor do volume de contos Maré Vazante e outras estórias e, atualmente, prepara seu segundo livro, Nunca mais voltei, que dever ser lançado em 2020, pela Editora Folhas de Relva. Participou das coletâneas Homossilábicas, Cem anos de Amor, Loucura e Morte e GOLPE: Antologia Manifesto, além de outros projetos e iniciativas literárias. É cinéfilo, ama música e também é fotógrafo amador.