#UM – GRAZIELA BRUM

Coluna | Campo de Heliantos



 De dentro de um girassol, vi uma menina no jardim. Ela não me viu, meu corpo se encontrava mergulhado no amarelo das pétalas. A textura macia da flor acariciava a pele toda vez que me mexia. Eu era pequenina, mas nem por isso o mundo me metia medo. Aliás, podia afirmar, meu lugar era ali, no íntimo da flor, e nada mais me deixaria insegura, nem a garota de rosto gigante do lado de fora, nem minha mãe cobrando desempenho na escola. Agora sou girassol, pensei. Essa cena aconteceu comigo aos nove anos de idade durante a leitura de interpretação de texto na prova de português. A história falava de uma menina cuidadora do jardim de girassóis da avó. Com narrativa fácil, respondi as questões de interpretação em poucos minutos. Havia me preparado por dois dias, vinha de uma pressão constante, minha mãe exigia bons resultados na escola. Por isso, quando percebi que daria conta do recado, relaxei, e assim, na releitura, me tomei de tal sensibilidade que imaginei uma segunda história para o texto. Esse evento, mesmo parecendo insignificante na época, impactou-me subjetivamente ao ponto de se tornar um marco de referência na minha trajetória. Mais tarde, percebi que me sentia curiosa sobre tais experiências. Não sei por quantas vezes refiz esse episódio na minha cabeça, procurando compreender o que tinha acontecido. Anos depois, estudei sobre as fases de desenvolvimento da mente humana, procurei leituras, referências, conceitos para elucidar aquelas percepções. Seja como for, conscientemente ou não, quis a partir daí estimular meu lado criativo, manter o pensamento livre, construir histórias e passar por experiências semelhantes ao do girassol. A Literatura me veio como forma de manter a mente ativa e treinar minha imaginação. Preciso dizer também, me tornei curiosa com  intuição,  fantasia,  espiritualidade,  percepção,  glândula pineal. Enfim, termos que fui encontrando nos estudos sobre o poder de criar, e quero compartilhar nessa coluna como forma de instigar a própria criação. Aliás, como meu foco é a Literatura, acredito que é fundamental procurar na trajetória de escritores, como Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Gilka Machado, Pagu, Hilda Hilst, Ernest Hemingway, Pedro Juan Gutiérrez, Octavio Paz, Simone de Beauvoir, entre tantos outros, algumas respostas ou ainda mais dúvidas. Por que não?

Aqui, detalhe imprescindível para ativar a criatividade: o modelo. Em arte, digo, em escrita, buscar referências, ou seja, a família literária é um dos passos para construir o repertório e encontrar os ideais que sirvam como base no trabalho do próprio estilo, ou melhor, da singularidade.  No entanto, é preciso dizer que modelo é diferente de padrão. O modelo é o protótipo, o conceito, trabalha com arquétipos, imagens de como pode ser feito, mas não limita a criação de um projeto. O padrão relaciona-se com os efeitos da globalização, ou melhor, a massificação, processo de aceitação da sociedade, em que as cópias são estimuladas e a originalidade reprimida. Para criar é fundamental que se perceba esse lugar no qual vivemos mergulhados, a todo momento somos influenciados por uma forma pronta de pensar, de agir, de sentir, de viver, de consumir. A própria crítica pode se apresentar engessada dentro de um padrão aceito pela sociedade. Esse mesmo padrão nos leva a fantasia, o desejo massificado, que nos faz negar a nossa essência, pois a satisfação acaba nela mesmo, ou seja, na própria fantasia. Assim, há o bloqueio do nosso poder criativo, que nos limita no espaço e no tempo, nos enclausura dentro do desejo da massa, o qual julgamos ser também o nosso desejo. Para criar é preciso quebrar os padrões, fugir das formas prontas, e isso não quer dizer que não podemos entender das técnicas, mas é preciso reforçar, elas nos servem de exemplos, não produzem sem as mãos do artista, que como um ceramista vai moldando seu objeto-obra. Ah, mais um detalhe imprescindível, criar não é trabalho fácil, pelo contrário. A facilidade está na fantasia, e aqui o esforço, muitas vezes, não passa de uma imagem na tela do celular. Criar é jogar-se num precipício sem garantia de rede de proteção. Buscar dentro da experiência externa e, principalmente, dentro das peculiaridades internas, o ponto de despertar para a engrenagem da criação. Particularmente, trabalho com três ferramentas comprometidas com criações sadias: beleza, loucura e mistério. Conceitos intimidante relacionados que busco dentro do meu processo de escrita, o qual se tornaram força motriz das manifestações do meu universo, da imaginação revelada entre o real concreto e a vontade de criação. Ainda, não devemos esquecer dos sentidos, verdadeiros aliados na percepção do mundo ficcional, e também do espírito, ou seja, da busca pelo espírito puro(livre), que nos permite circular por camadas mais profundas de entendimento na construção de arte. Para finalizar meu texto, retomo a cena no jardim de girassóis, ainda indecifrável para mim. Em algum momento me ocorreu a ideia de que o  mundo escrito por Lewis Carroll em Alice no País das Maravilhas tenha me servido de base. Porém, continuo na procura de respostas e tenho aqui um desafio, o exercício da criação pela escrita. Também, espero que os textos de Campo de Heliantos sirvam de estímulo e reverberem na construção de nossas artes.

Para isso, gostaria de sugerir um simples exercício para conectar música e cor.

Primeiro Exercício de Criatividade: Escute a música Merry Christmas, Mr. Lawrence e feche os olhos. Treine sua sensibilidade, observe todos os detalhes que a música provoca em seu corpo, respire e imagine você se envolvendo nas notas, tente conectar-se e deixe o sentimento vir. Solte-se e quando estiver totalmente relaxado, procure visualizar uma cor. Se conseguir enxergá-la, guarde-a para o próximo exercício de criação. Até lá!

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Merry Christmas, Mr. Lawrence
também pode ser encontrada no Spotify

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Graziela Brum idealizou e coordena o Projeto Literário Senhoras Obscenas. Vencedora de dois concursos ProAc em São Paulo, com Fumaça (2014) e Jenipará (2019) – que é o primeiro romance de uma trilogia sobre a Amazônia -, também publicou Vejo Girassóis em Você (Lumme), de prosa poética.