NOVOS ESPASMOS DE REALIDADE – ADRIANO B. ESPÍNDOLA SANTOS

Lorena, a menina tão amada, se escondia da realidade. Maria, sua mãe, lhe dizia que a realidade era dura, cruel. Lorena se escondia ainda mais. Não queria ver a luz do sol. O efeito era contrário: quanto mais a mãe falava em guerras, desastres, calamidades, epidemias, mais Lorena se restringia ao seu quarto; quando muito, ia à cozinha, para pegar uns croquetes ou umas rabanadas, bem prontas, feitos pela mãe.

Via o mundo feito um pobre pássaro numa circunspecta gaiola, pelas frestas da janela, e aí estava bem. Maria se afobava e explorava o medo. Achava que o medo a impulsionaria para frente, como que em busca de uma escapatória para a vida comum, além de lhe fazer consentir com a labuta designada naturalmente aos pobres. O medo, contudo, a impulsionava para o abismo, cada vez mais.

Maria, quando se aperreava com as contas e as coisas que lhe fugiam ao controle, ganhava o mundo. Acostumada a sair com os galos, às quatro e meia da manhã, para pegar quatro conduções rumo ao mundo exclusivo da classe abastada, dava graças a Deus por não ter de padecer, junto com Lorena, as agruras de uma vida comezinha, doentia. E o fato de não saber lidar com aquilo a colocava, justamente, em situação de fuga, e aí estava bem.

O medo. O medo. Que medo? Lorena se acostumara a quedar longas horas enfurnada, sem ter contato com vivalma, aprontando suas artimanhas de sobrevivência. Empilhava e desempilhava brinquedos velhos, como a arrumar uma grande e desordenada torre, como a refletir a sua vida; restaurava as roupas puídas, com fios quebradiços, entre agulhas e dedais, na máquina velha da vó falecida; organizava-as em seu projeto de guarda-roupa, prestes a implodir de tão frágil. Até que Sebastião entrou por um minúsculo buraco da porta da sala-quarto. Tinha o tamanho de um abacate; da cor, também, de um abacate maduro. Sem testemunhas e a quem recorrer, fincou-se ao pé da mesa da cozinha, atrás de uns caixotes que a mãe juntava para vender na reciclagem. Quis, com um cabo de vassoura, afastá-lo com bruscas bordoadas no chão, mas não conseguia sequer tocar nele; jamais seria capaz de machucá-lo. O bicho não dava conta de nada; indiferente, resolveu continuar ali, próximo ao local de entrada. Olharam-se todo o dia. Lorena comeu o que tinha sobre a mesa, porque não teve força nas pernas para caminhar até a geladeira, tirar a comida pronta e requentar.

Lorena já convivia bem com a criatura, quando, tendo contado no relógio dezoito horas, deu por si que a mãe estaria para voltar – em menos de uma hora, quiçá, poderia adentrar e atualizá-la dos medos da cidade. Sucedeu o inimaginável, e Lorena desejou proteger o pequeno Sebastião – o batismo, na verdade, ocorreu aí, de súbito: Sebastião. Arranjou um jeito de colocá-lo em uma das caixas vazias. Decerto, Maria não iria ligar ou intuir a novidade.

Dito e feito, a caixa pequena permaneceu em seu quarto/sala, misturada às demais. Maria chegou esbaforida, vexada, na mesma velocidade do ônibus de que acabara de saltar. Disse que a enchente poderia chegar ali; que, naquele dia, num assalto, próximo ao trabalho, teriam matado dois; que Fernanda, sua amiga, perdera um filho por uma bala que o havia achado, certeira na testa.

“Minha filha, você precisa se arranjar na vida. Vá procurar um serviço numa casa de família; lavar umas roupas; ocupar essa cabecinha. Não pode ficar aí parada, esperando o tempo passar. Pra quê? A vida é dura. A vida é cruel. Sua mãe é hoje, não é amanhã. Você tem de se virar!”.

Desta feita, Lorena ouvia a mãe com um riso que outro poderia supor falso, debochado. Mas era um riso vago, em outra esfera, em outra camada da realidade. As palavras da mãe entraram-lhe pelos ouvidos e logo saíram incólumes. Lorena não via a hora de poder, de novo, encontrar o amigo Sebastião. Maria já achava a filha abestalhada, confidenciara inclusive à irmã, no Norte. Agora, declarara em sua mente que a menina, inteiramente, ficara louca. Perdidas, portanto, para ela, as derradeiras tentativas de alçá-la à liberdade. Seriam duas a sucumbir à realidade dura, cruel.

Maria, então, não se conteve de emoção ao avistar a filha escancarar as janelas do quarto, que davam para o nada; mesmo assim, podiam se ver os céus e o bendito sol. Os mofos e ácaros parece que, afugentados, não perturbavam mais as narinas e os brônquios de Lorena, que, aflitos, queriam expulsar a qualquer custo os intrusos. Foram noites a fio em que Maria não dormiu, acudindo a filha com xaropes e afins. Presentemente, dormia um sono tranquilo.

Lorena amanhecia tão pronto a mãe começava a se arrumar.

Lorena queria pegar a condução para algum lugar.

Lorena ganhou a liberdade e perdeu a fobia do medo impregnado.

Lorena e seu amigo Sebastião não se desgrudavam mais, porque, todos os dias, como uma reza de hora marcada, sacava o pequeno bojudo para fora da mochila e deixava-o respirar, com ela, os lindos dias.

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Adriano B. Espíndola Santos
. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora. Colabora com a Revista Samizdat. Tem crônicas e contos publicados nas Revistas Berro, InComunidade, Lavoura, Literatura & Fechadura, Pixé, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.