Jamais senti o céu tão perto dos olhos. As estrelas orbitando pelas retinas. O saco plástico aberto, um punhado de veneno em pó na calçada. Os dedos dos pés dobrados, agora, relaxam. As mãos não mais formigam. Havia passado um mês. A boca seca e a língua mordida. A garganta arranha, engulo saliva, arranha. Incomoda. Ofegante sento na sarjeta. Joelhos encostados no peito. Um feto à beira da avenida. Certifico se a carteira continua no bolso. Está. Limpo com a palma da mão o suor na testa e enxugo os dedos na calça jeans. Havia tido mais um ataque de pânico.
Você acredita em duendes, Caio, vou atrás de um, quer vir? O quê? Para os lados de Vitória, parece que avistaram um no Porto de Tubarão, ele conseguiu correr. Correr? Sim. Mas são tão pequenos. Correm muito, e desaparecem, assim, desse jeito. E como se captura um duende, Ivan? Boa pergunta, geralmente com corda de aço. Ah, Ivan, que sem graça. Como assim, cuzão? Cara, pensei que tinha algum lance de magia, palavra secreta, Abracadabra, sabe? Um cajado com alguma poção milenar vinda da receita de um velho mago escondido nas cavernas frias da Malásia, sei lá, algo absurdo que te faça sair de casa para caçar duendes. Caio, só de existir duendes já me faz cair no mundo por uma aventura. Aventura? Você entendeu, mano. Só sairia de casa se eu tivesse algo mais fantasioso para algo fantasioso. Cala a boca, o que tá tomando? Mijo de duende, dizem que é alcóolico e traz poderes surreais. Vá se foder, Caio.
Como vai, meu velho? Aqui tudo bem e por aí? Tranquilo. O tempo tá fechado, vai chover. Ainda está aberto, com sol em São Paulo, mamãe tá bem? Sim, foi lá no quintal regar as plantas. Manda beijo pra ela. Pode deixar, filhão, ontem vi um filmão, não sei o nome do ator, aquele que o Brad Pitt faz uma suástica na testa dele no final do filme do Tarantino. Christoph Waltz. Esse mesmo. Qual filme é? É aquele lá que o diretor do Mãos de Tesoura fez, Tim alguma coisa. Tim Burton, o filme é Grandes Olhos. É, esse mesmo, maluco queria assinar os quadros da companheira. Foda, né? Demais, e do resto? Vou pra Vitória. Fazer o que em Vitória? Caçar um duende. Duende? Isso. Duende, aquele de gorro e orelhas pontudas. Não sei se são assim, mas descobrirei. Duende? Duende, pai. Marta, vem cá, vem falar com teu filho, o caso ficou sério. Alô. Alô. Alô. Oi, meu amor, tudo bem? Oi, minha mãe, tudo bem, vou caçar duende em Vitória. Tá, mas não esqueça de levar o remédio.
Lembra qual foi a sua última boa lembrança do cinema? Acho que foi o Oscar de melhor filme para o Parasita, berrei quando a Jane Fonda anunciou e você acordou assustada? Claro que lembro, fiquei muito puta. Era um momento histórico, bunita, precisava gritar. Na próxima coloca um travesseiro na cara e grita. Tá bom. Ontem sonhei que fui ao cinema. É? Foi, sim. Conta pra mim. Você nunca me escuta, sempre ocupado pra mim. Estamos em quarentena, temos todo o tempo do mundo. Sabe que pra mim o cinema é como um templo, refúgio espirituatográfico, minha seita, um desejo indescritível de me arrumar, colocar aquela roupa confortável para aguentar horas sentada na poltrona da sala de sessão, sair de casa, pegar o metrô, o corpo fica com uma sensação trêmula quando chego mais perto do cinema, adorava pegar a fila para comprar o ingresso, as televisões no teto passando os trailers dos filmes em cartazes e, também, das próximas estreias, o cheiro de pipoca, da manteiga na pipoca, do balde de pipoca, o café, o refil de refrigerante, aqueles saquinhos de M&M’s e de bala de goma que colocava no bolso, caminhar no corredor de carpete sentido à sala de exibição e, finalmente, entrar, sentar e aguardar à meia-luz para os sinais de avisos emergenciais e, pronto, o filme rolando, eita, saudade, Caio. Qual foi o seu último filme antes do fim do mundo, bunita? Retrato de uma jovem em chamas.
“Não adianta nem me abandonar”. Desliga essa merda, Ivan. Calma, Caio, fica calmo. Calmo o caralho, não sei o motivo de enfiar o duende na mala, ele não para de chutar. Se abrirmos, ele foge. Bato nele? Não, vai ficar mais bravo. Ivan, como vamos passar pela fiscalização? Deixa comigo.
O mundo está saindo de um processo de reflexão, conscientização, um tremendo ensinamento que este período proporcionou à humanidade, fechem agora os olhos e vamos rezar. Mãe, mãe, manhê. Fala, filho. Abaixa a televisão e tira o celular do viva-voz, é sério. Diga, Caio. O Ivan sumiu. Quem é Ivan. O Ivanzinho, aquele da escola. Da escola? Meu primeiro amor. Ah, você ainda fala com ele? Sim, mãe, sim. Que bonito. Mãe, o assunto é outro. Me conta. Lembra que te falei que ia caçar duende? Lembro, levou o remédio? Mãe, o caso é que o Ivan sumiu, do nada, ele estava sentado do meu lado no busão, adormeci e quando acordei, sumiu, desapareceu. Ué, o ônibus teve parada? Sim. Vai que esqueceram ele. Não, mãe, eu saberia, ele estava do meu lado. Ligou pra ele? Ele não usa celular. Por quê? É complicado, Ivan acha que está sendo monitorado por saber sobre a existência de duendes. E existem? É complicado de explicar.
O mundo mudou, você precisa ficar atento à essas mudanças, desde o fim do isolamento, a humanidade se adapta às mudanças, fique preparado, invista e aguarde a nossa chamada.
Está com fome? Você come? Você se alimenta de quê? Comprei milho, ervilha, atum ralado e miojo. Sabe o que é tudo isso? Come miojo? Tem nome? Duende é pejorativo? Quer, por favor, falar comigo. Eu vou abrir a mala. Não me ataque. Aqui está tudo fechado. Não temo como fugir. Se me atacar eu te mato.
Está me vendo? A conexão tá fraca, mas tô sim. A sua imagem fica parando. A sua voz está cortando. Vou desligar e chamar de novo, tá bom? Tá. Oi, bunita, como está agora? Perfeito. Ótimo, tudo bem por aí? Tudo bem, hoje foi o meu primeiro dia na rua, sol na Piazza del Popolo. Que ótimo, fiquei preocupado com a sua viagem, no meio daquela tormenta toda e você pegar avião. Você sabe que foi necessário. Eu sei, eu sei. Me conta de você, como estão as coisas por aí no Brasil? Depois de oito meses consegui sair, estava com medo, aquele medo de trombar com as pessoas, tocar nas coisas fora de casa, respirar ao lado de gente, tive dois ataques pesados de ansiedade na quarentena. Nossa, Caio. Foi foda, sabe aquela sensação de não ter controle do próprio corpo, o cérebro reagindo ao seu medo, foi assim. Tomou remédio? Tinha Ritmoneuran aqui, ajudou. Falou com a Carla? Ela fez uma sessão emergencial, mas só me perguntava por quê, por quê, por quê. Como você tá agora. Ficou o trauma, aquela sensação de insegurança, à espreita de acontecer de novo, medo. Vem pra cá. Vou.
Vai demorar uns cinco minutos, tá com muita fome? Quer falar comigo. Por favor. Diga algo. De onde você é? Quantos anos você tem? Qual o motivo de estar aqui no Brasil? Se perdeu? Caiu? Entrou no portal errado? Bebeu alguma magia que te transportou pra cá? Tem namorada? Filhos? Duendinhos? Por que vivia isolado? Tem varinha? Você tira coisas de dentro do gorro? Que porra você come? Fala. Fala. Fala.
O que faz, bunita? Nesses tempos de confinamento gosto de entrar no canal do Oscar para ver os vencedores das premiações anteriores. No YouTube? Sim, vou te mandar o link: Oscars. Obrigado, bunita. Vejo os discursos e as reações dos atores, quem concorreu, qual filme foi indicado, como perdeu e como venceu. O abraço de Spike Lee em Samuel L. Jackson, Jordan Peele ao receber o prêmio de Melhor Roteiro por Corra, Art Carney desbancou Jack Nickolson, Al Pacino e Dustin Hoffman na categoria de Melhor Ator, em 1974, o Oscar de Guillermo del Toro foi um salto grande para o mundo nerd.
O que os trazem a Vitória? Pode parecer estranho, mas estamos à procura de um duende. Aqui, em Vitória? No Porto de Tubarão. Em Tubarão? Lá mesmo. Lá não tem porra nenhuma. Por isso o duende está lá, eles gostam de lugares de pouco movimento humano. No Porto de Tubarão vem gente do mundo inteiro. Caralho, tem razão. Quem disse pra vocês essa bobagem? Não posso falar, ele está nos lendo. Lendo? É complicado, certo, Caio? O que você falar, eu concordo. Eu tenho um. O quê? Sim, e, tenho certeza, não está no Porto de Tubarão. Como assim? Está no quartinho da edícula de casa. Se foder, mentiroso. É real, deixa eu fechar o bar que depois levo vocês. Qual o motivo de nos falar isso tudo? É que eu já estou de saco cheio dele, nunca falou, jamais interagiu comigo, fica no quarto o dia todo, não sai, não faz nada, quero me desfazer, sabe? Desfazer? Vocês entenderam, eu o peguei na rua, na época da quarentena, ele estava com um galo enorme na testa e com as orelhas cortadas, acho que brigou, não ia deixar jogado na sarjeta, mesmo um duende, tinha que ser cuidado. Cuidado? É, fiz curativo, sopa, dei remédio e tudo mais. Tudo mais? É, porra, bota fé, tá em casa. Entendemos. Eu pesquisei sobre essas coisas. Coisas? Duende, caralho. Ah, sim, nós também. É, mas quando você está com um dentro de casa, a curiosidade é maior. Pode crer. Eles são calados por um motivo. E qual? Se abrirem a boca, eles te hipnotizam, só com a lábia. Com a lábia? Sim, ainda bem que comigo não abriu a boca. Mas você reclamou que ele não fala. Sim, melhor assim. Pode crer. Acreditaram? Me diz uma coisa, não tem como fechar o bar agora?
Agir com violência, eis a inteligência humana. Vivem pela ação, pela dor, de causar medo, visões claras da falta de atenção quando dão o soco ou tiro, a desilusão faz o mendigo, coberto de saco plástico, consciente de que nada resolverá a sua apreensão contra o frio, a ignorância perpétua do ser humano, fadado a descobrir a dimensão do poder, de causar leis, apontar ruídos de vida e morte, pega, toque em minhas mãos, mãos estas de mais de duzentos anos, podem estar longe os meus primeiros anos físicos, mas a memória é presente, o movimento incoerente do tempo, a experiência ensina, maltrata, mas apreende, composto triste de maldade, bosque de náuseas, acidental percurso sem volta, o ser humano é anônimo, quebrado, concreto, eu sou inexistente, já nascemos mortos, moléculas enfraquecidas e mortas, pasme, sou fantasia, insólito, algo de sua cabeça, talvez, talvez, talvez, consequência de uma experiência inexplicável, o trauma fica, você saiu de um isolamento, mas o isolamento continua dentro da sua cabeça, caçoa, brinca com sua realidade, caçador de si mesmo, a nova ordem cerebral, jaz aqui a perda da maturidade, ah, apreciável inveja do humano embasbacado com a sua habilidade de não ter controle do próprio corpo, ah, palidez de um sangue quente correndo em sua epiderme agasalhando o choque, perene anseio impalpável, nasceu sem mãe, sem pai, alinhado com roubos e lampejos de raiva, o ódio e o medo caminhando juntos em um parque sombrio ao meio-dia, ninguém para lhe dar socorro, esperança não atravessou a calçada, a morte na gangorra, aprisionado por um mero humano que, daqui um mês, cometerá o suicídio, inútil na penumbra do mundo, faz-se de si, metódico até mesmo para morrer, agora me despeço, você já perdeu o seu amigo, não sabe em que canto ele se meteu, e assim será, não venha atrás de mim, eu continuarei, escondido, mas avante, vou-me embora, e fique aqui, neste quarto de hotel, enquanto saio e lhe deixo pensativo, embaixo da lâmpada, em cima de seu próprio mijo e, por meio de tudo, a angústia, adeus, Caio.
O trânsito é a alma do tempo, o duende saiu do quarto do hotel, fechou a porta. Hipnotizado por suas palavras estava Caio. Não movia um músculo, ideia não lhe surgia. Pensou na bunita, nos pais. E ficou assim, paralisado, até o amanhecer do outro dia. Caçar duendes depois do fim do mundo. Maldita ideia. Sem Ivan, restou a Caio retornar para São Paulo e aguardar a virada do mês.
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JORGE IALANJI FILHOLINI é escritor, editor e produtor cultural. Autor dos livros de contos Somos mais limpos pela manhã (Selo Demônio Negro, 2016) e Somente nos cinemas (Ateliê Editorial, 2019).