Coluna | Terra Treva
Na noite tempestuosa, o ribombar de um trovão.
Se esse som nos assusta ainda hoje, em pleno século XX, podemos imaginar o que acontecia com os nossos parentes mais distantes, de dezenas de milhares de anos atrás. Soltos em um mundo selvagem e (então) desconhecido, os homens primitivos viviam constantemente apavorados – até porque o medo sempre foi um mecanismo de sobrevivência. E entre todos os cinco sentidos, provavelmente nenhum se mantinha tão alerta quanto a audição. O ouvido sempre enrijeceu os músculos, antecipou o perigo e disparou a adrenalina necessária para enfrentá-lo. Fosse o rumor crescente de uma tribo inimiga se aproximando, os farfalhar de algum animal ameaçador pisando a relva, o rugido do vento e, claro, o espocar de um trovão: o homem antigo temia o que ouvia – e temia porque ouvia.
O homem de hoje, também. Prova disso é o papel fundamental da sonoplastia e da trilha sonora em qualquer narrativa de suspense ou horror. Sem um bom trabalho de compositores e sound designers, a maioria das obras-primas do cinema (além de séries e games) perderia muito de sua força. Imagem e som são cuidadosamente combinados para despertar o mais antigo e mais forte de nossos sentimentos.
Agora, o que acontece se retiramos o “visual” dessa combinação? Se apenas a sonoplastia e a composição são trabalhadas para inquietar e suscitar o medo? Aí teremos, literalmente, a música de horror. Não estamos falando das trilhas sonoras, que assumem um caráter acessório, um instrumento para que uma história seja contada numa tela. Tampouco falamos daquelas vertentes extremas do heavy metal, com temáticas e letras bastante específicas, como o black metal (geralmente satanismo e paganismo), o death metal (autoexplicativo), o grindcore e derivados.
Embora esses gêneros tenham contribuído demais para o universo do horror, alimentando-o e sendo alimentado por ele, aqui exploraremos territórios menos conhecidos. Avançaremos por paisagens menos familiares, menos óbvias e, exatamente por isso, mais ameaçadoras. Porque nos remetem a séculos e séculos atrás, colocando-nos na pele cascuda daquele homem primevo, desamparado – e apavorado. As paisagens que se reúnem sob a categoria de “dark ambient”.
É verdade que o nome para o gênero não o favorece. Vem de “ambient music”, que muitos podem associar a músicas de sala de espera ou de elevador. Mas definitivamente não é o caso. Até pela matriz musical: o dark ambient é uma dissidência de gêneros conhecidos como noise e industrial, cujas marcas são a experimentação e a combinação entre rock e música eletrônica. Dessas matrizes, os artistas de dark ambient herdaram as temáticas obscuras, a influência eletrônica e a liberdade experimental – sempre a serviço das “forças do mal”, é claro.
As primeiras manifestações começam a surgir no final dos anos 1970. O pioneirismo coube a nomes como Throbbing Gristle, Einstürzende Neubauten, Swans, Cabaret Voltaire, SPK e uma série de outras formações que tinham algo em comum: entrar em um estúdio com os mais variados objetos e instrumentos, e só sair de lá com algo que causasse impacto. Impacto físico, no caso de bandas como o Swans: não era raro que pessoas vomitassem durante as apresentações ensurdecedoras de Michael Gira e seus asseclas.
Com o passar do tempo, o experimentalismo foi perdendo força. A explosão libertária dos anos setenta ficou para trás; o mundo foi se tornando mais e mais sombrio, e a música desses artistas também. A partir dos anos 80 e 90, um número cada vez maior de músicos passou a dedicar esforços a ambiências menos experimentais e mais consistentes, conceituais.
Essencialmente evocativos, esses compositores deixaram de lado as piruetas eletroacústicas para explorar texturas e timbres graves, lentos, macabros. Para de fato criar panoramas com vida e personagens próprias, que iam além do caráter suplementar de trilhas sonoras. Nomes como Nocturnal Emissions, Zoviet France, Nurse with wound e Lustmord surgiam, naquele momento, como os primeiros paisagistas do desconhecido.
Daremos destaque a este último. O projeto Lustmord nasceu realmente à noite, como atividade paralela do galês Brian Williams. Sem exagero: compositor de trilhas sonoras durante o dia, Williams passou a dedicar as noites à criação das peças mais tenebrosas de que se tem notícia. São… obras extensas, vagarosas e monumentais, que ora nos acomodam na carcaça de um titã voador, ora nos abandonam diante dos abismos de nós mesmos, ora nos aprisionam numa região que nem Lovecraft ousou conceber, assombrada por almas monstruosas.
Subjetividades à parte, o fato é que o dark ambient, desde então, vem atraindo cada vez mais criadores – e aficionados. O movimento constituiu uma inegável novidade no universo do horror: a exploração de recursos musicais com o único intuito de causar desamparo, inquietação, desfamiliaridade e todos aqueles sentimentos que associamos ao medo. A música, neste caso, deixa de amparar o cinema para assumir, ela própria, a criação de mundos apavorantes.
Talvez não seja exagero comparar o advento à publicação de “O Castelo de Otranto”, em 1764. Hoje, é consenso que o livro do britânico Horace Walpole tenha inaugurado o gênero literário não apenas do gótico, mas do horror – justamente por apresentar uma história cuja única finalidade era amedrontar os leitores, sem intenções morais ou religiosas.
Assumindo que tanto a literatura quanto a música tenham esse poder de esporear a imaginação, de convocá-la para preencher as lacunas do desconhecido, talvez não seja um delírio afirmar que estamos diante de um novo veículo para “o mais antigo e mais forte sentimento humano”, conforme postulou H.P. Lovecraft, um dos maiores nomes da ficção literária de horror. Estamos diante e um veículo que atualiza a nossa “herança do medo”, unindo os sons que aterrorizavam nossos ancestrais às possibilidades oferecidas pelos recursos tecnológicos de hoje.
Afinal, como também já dizia outro gigante – o compositor húngaro Franz Liszt -, “a música é o coração da vida”. E das trevas também, neste caso.
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Oscar Nestarez é pesquisador e escritor da ficção literária de horror. No campo da pesquisa acadêmica, possui Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e atualmente cursa Doutorado pela USP, tendo como objeto de estudos centrais a obra de Edgar Allan Poe. Como ficcionista, publicou Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura (ed. Livrus, 2013), as antologias Sexorcista e outros relatos insólitos (ed. Livrus, 2014) e Horror adentro (ed. Kazuá, 2016), e o romance Bile negra (ed. Empíreo, 2017), além de contos em diversas coletâneas. É também é colunista da Revista Galileu, em que aborda temas da ficção de horror.