|Terra Treva
Por Oscar Nestarez
De que não era uma noite qualquer, eu já sabia. Eu mesmo me sentia diferente porque ia encontrá-la, um dia depois de tê-la visto pela segunda vez.
A primeira acontecera um mês e meio antes, quando fui dar uma palestra no colégio em que estudei. Era a professora de português das turmas para as quais eu falaria, e o choque ao conhecê-la não foi de baixa voltagem. Era uma linda mulher, linda mestiça. Ao choque, porém, sucedeu o pânico: como é que poderia eu prestar atenção ao que quer que fosse? Eu estava lá para falar sobre literatura fantástica a crianças do oitavo ano do ensino fundamental. Mas como é que poderia me concentrar na cronologia quando tinha diante de mim aquele inacreditável sorriso de lábios polpudos? Como é que conseguiria discorrer sobre a vida de Edgar Allan Poe diante daqueles olhos? Que eram puxados o bastante para a afastar do ocidente, mas não tanto para a enviar ao oriente, deixando-a em uma fascinante zona intermediária?
Preocupação à toa, felizmente; ela ficou ao meu lado no tablado durante as palestras. Fora, portanto, do alcance da minha visão. Alívio, tudo correra bem! Mas eram tais traços que me vinham à mente naquela noite, e que faziam-na tão diferente das outras.
Havia acabado de jantar com meu pai e me sentia leve, musical. Tanto que subi ao meu antigo quarto e escolhi alguns discos saudosos para ouvir no longo caminho que percorreria até a casa dela, no Morumbi. Confiante, também resgatei uma garrafa de vinho chileno da adega improvisada do pai.
Desci a bordo de uma nuvem, despedi-me com o beijo de costume na careca dele e parti, provavelmente assobiando, não sei bem. Mas parti, vinho e discos em punho, a mochila com nécessaire e mudas de roupas (outros indicadores de minha confiança naquela noite) já acomodada no banco traseiro da picape.
No caminho, uma breve pausa em um dos boxes de floricultura pegados ao cemitério do Araçá, atrás do qual morava meu pai. Meus olhos recaíram sobre um singelo arranjo de rosas colombianas; rápida disputa com o vendedor, negócio fechado, redigi um carinhoso cartão e toquei, ansioso, para o Morumbi. Mais precisamente para a Vila Andrade, nas franjas do bairro da zona sul, a quatorze quilômetros dali.
O caminho foi um deleite. Embalado por canções antigas e amigas, segui como um navegante, mas orientando-me pelos pontos cardeais que formam o rosto da musa. Uma espécie de “ligue os pontos” ubíquo. No céu nublado, nas traseiras dos carros, nas fachadas dos prédios e das casas; o rosto dela estava por todos os lados, e não via a hora de tê-lo entre as mãos. Dirigia distraído – mais do que o costume, avaliando aquela maravilhosa sensação de descoberta e que, o melhor de tudo, parecia estar somente no início. Já eram nove da noite; havíamos combinado dali a meia hora.
Mas cheguei antes. Contrariando previsões, não havia trânsito algum. Após circular vagarosamente pelo quarteirão, de olho no caminho que o GPS do celular indicava, entrei na rua Nilson Alencar e, às exatas nove horas e dez minutos, estacionei em frente ao prédio número 127, condomínio Elysée. Ela ainda estava no colégio, assistindo a uma palestra, e resolvi aguardar por ali mesmo, enquanto desfrutava da deliciosa companhia dos discos. Mandei uma mensagem comunicando minha decisão, baixei um pouco a janela, aumentei o som e me despachei de vez, inteiro, para aquela terra feliz na qual meu espírito já se projetara havia alguns dias.
Quando os vi, era tarde demais.
Só tive tempo de despertar; e imediatamente percebi do que se tratava. Eram dois, a pé. Caminharam rápido na direção do carro; um se aproximou de mim e sequer teve que retirar por inteiro o objeto metálico do bolso do moletom:
“Aí! Vai pra lá, vai pra lá!”
Nem precisaria ter pedido, já me deslocava para o banco do passageiro. O carro estava destrancado, e o outro se acomodou no banco de trás.
“Carteira, celular…”
Entreguei tudo e baixei a cabeça, o coração ainda galopando pela súbita consciência do que acontecia.
“Onde é o freio de mão?”
Indiquei que ficava no pé esquerdo.
“E a ré? Dá a ré.”
Engatei. O rapaz do banco de trás estava com a mochila aberta no colo e me passou o iPad.
“Um tablet… Põe aí a senha.”
Digitei os quatro números na tela enquanto o outro acelerava a picape pelas ruas da Vila Andrade. Acolhi com os pés o vaso de rosas colombianas. No rádio que permanecia ligado, Close to me, do Cure, compunha um terrível contraponto à situação.
Com o punho, o motorista ergueu o retrovisor de modo que não refletisse nada. Abriu minha carteira e retirou os cartões.
“A senha.”
Eu mantinha a cabeça baixa, o coração se acalmando bem aos poucos. Minha voz não ia além de um muxoxo.
“9215 do Mastercard, 4524 do Visa…”
“9215…”
“Podem pegar o que quiserem, numa boa.”
“Tá de boa, tá colaborando, nóis vai fazê o corre e te liberá.”
O rapaz no banco traseiro retirou o chip do meu celular e o passou para mim; guardei-o no bolso. O motorista sacou do telefone e ligou.
“Tamo ino. Pra sem saída, isso. Na sem saída.”
Cerca de dez minutos depois, sem jamais erguer a cabeça, senti a inclinação. Percebi que subíamos algum morro. Então estacionamos, e o motorista saiu do carro. Ergui-me lentamente enquanto o outro, o de trás, agitava-se sem nada dizer. Olhei para os lados: era uma comunidade. A rua de terra batida terminava em uma viela sinistra. Às vezes, eu ouvia o tilintar de metal se chocando contra metal; um gesto proposital, presumi. No rádio, acentuando o absurdo, Pepper, do Butthole Surfers. Aquilo já era demais.
“Quer que eu desligue o som?”
O tilintar continuava.
“Não, tá suave…”
O rapaz continuava agitado, olhando para os lados e para trás, até que abriu lentamente a porta do carro. Um outro sujeito passou caminhando pela rua e emitiu sons que pareciam o pipilar de uma coruja.
“Desce, desce.”
Como achei que permaneceria dentro do carro, senti o coração rufar por todo o corpo. Saí com cuidado e pisei na terra, sempre olhando para o chão. Percebi que o rapaz se aproximava de mim, por trás.
“Vai andano, sobe ali.”
À direita, uma trilha bastante estreita levava ao topo de um barranco; percorri-a com cuidado até chegar a um promontório baldio. A noite estava fria, úmida, e eu adivinhava o céu sem estrelas. O vento agitava o matagal do qual eu não tirava os olhos. O matagal e os cabelos muito escuros dela, emoldurando o rosto que vez por outra aparecia ali. Um outro sujeito que já estava no local indicou um lugar no chão.
“Vai, senta ali.”
Eu não me atrevia a erguer a cabeça para ver onde ele indicava.
“Ali, ali, ó! Tá tirano, mano?”
Um toque abrupto e frio nas costas me indicou a relva; ali sentei com as pernas cruzadas. Jamais tirava os olhos do chão, e os pensamentos dela. Devia estar enlouquecida; já adivinhara o que acontecera, com certeza, e devia estar desesperada. Isso me oprimiu.
Um par de tênis Puma Disc vermelhos parou à minha frente enquanto o outro rapaz, o que viera comigo no carro, colocou-se na beirada do morro, monitorando o movimento da rua. A voz do Puma Disc era dura, enfática.
“Nós vamo fazê o corre e te liberá, cê vai saí co seu carro e tudo.”
“Podem levar o que quiserem…”
O Puma Disc se afastou um pouco e começou a usar o celular.
“E aí, mano? Já era? Alôu! ALÔU? Porra, agitô o baguio?”
Naquele momento lembrei que, talvez, no calor da ocorrência, tivesse dado a senha errada. Caso quisessem fazer saques em algum caixa eletrônico, teriam de digitar mais dois números. Achei melhor comunicar isso.
“Talvez faltem números…”
A voz saía em um muxoxo rendido, sempre. O Puma Disc caminhou até mim.
“Qual é a senha, mano? Dá a senha.”
“Se ele for sacar, é 921531.. mas acho que precisa da digital.”
A imagem da ponta do meu indicador decepada me atordoou. Puma Disc continuava ao telefone.
“Peraí”, dirigindo-se para mim, “dá a senha de novo aí.”
“A do Mastercard é 9215…”
“Aí mano, Mastercard 9215.”
“E a do Visa, 4524.”
“Visa é 4524. Mete o loco, caraio! Faz o baguio logo! Vem comprano, vem comprano porra!”
Colocou o celular de lado.
“De boa mano, cê tá colaborano, nós vai te liberá. Cê é o quê?”
“Escritor…”
“Da polícia?”
“Não, não sou escrivão. Sou escritor de livros. Escrevo histórias de terror.”
“Qual foi o livro que cê fez?”
“O último se chama ‘Sexorcista’”.
“Sexorcista… é sexo com terror?”
“É, isso.”
“Quanto você tem na conta?”
“Uns XXXX.”
“Caraio mano, seu livro não vendeu nada, é?”
Não consegui abafar o riso.
“Pois é, não é fácil essa vida.”
“Caraio, cê tem mó cara de boy…”
“Imagina. Sou nada, tenho que batalhar muito.”
“Cê é de boa, mano, nós vai te liberá. Faz tudo certinho que tá de boa. Mas nós sabe sê malvado tamém, tá ligado, né?”
“Tranquilo, faço o que precisar.”
“Nós num gosta de ficá fazeno isso não, tá ligado? Mas é foda, fim de ano e três fio pra criá.”
“Quantos anos têm seus filhos?”
“Uma tem três ano, outra dois, e o menor 6 meses.”
“Trabalho numa ONG, tomo conta de crianças doentes. Elas têm mais ou menos essa idade.”
“Que ONG é essa?”
“Chama Saúde Criança, atende famílias de crianças doentes pra melhorar a situação delas.”
Puma Disc ficou agitado de repente. Sussurrou para o vigia da rua.
“E aquele farol, mano? E aquele farol? Tá normal? Tá normal?”
A resposta veio numa voz tranquila.
“Suave, é o mano da sete, tá de boa.”
Voltou-se para mim.
“Tava fazeno o quê ali?”
“Esperando minha mina.”
“Ela tá te esperano?”
“Acho que tá.”
Dirigiu-se para o vigia.
“Dá o celulá dele aí.” Pegou o aparelho e me entregou. “Cê vai ligá pra ela e dizê que sofreu um acidente na marginal com um motoqueiro.”
“Certo.”
Peguei o aparelho e procurei pelo chip no bolso. O nervosismo aumentava; não o encontrava.
“Não tô achando…”
“Perdeu o chip, mano? Tá de onda?”
“Desculpa, sou meio distraído.”
Achei-o, enfim, no fundo do bolso dos jeans. Alívio imenso. Inseri-o no aparelho, mas a rede não vinha. Tentei retirá-lo, revolvi o celular, e o flash da câmera disparou. A voz do Puma Disc se tornou ameaçadora.
“Tirô foto, mano? Tá loco?!”
“Desculpa, sou desastrado mesmo. Não tô conseguindo colocar o chip.”
“Dáqui isso.”
Pegou da minha mão e começou a mexer, enquanto, ao telefone, continuava a enviar ordens aos “parças”. O rosto dela reapareceu de novo, agora aflito, no mato escuro à frente.
“E aí, mano? Já era? Porra, mete loco aí, caraio! Tá de vacilo, sai comprano! Alou! Alou?”
Retirou o chip do aparelho e me devolveu a pecinha.
“Alou? Porra, já falei a senha, mano! Cê é foda!”
Comecei lentamente, minha voz ecoada pela do Puma Disc:
“Mastercard: nove… dois… um… cinco…”
“Pegô aí mano? Vem parando nos baguio e comprano caraio. Compra tela, tá ligado? Tela!”
Via-a ali, no mato, e atrás das minhas pálpebras; estava grudada ao telefone, tentando decidir o que fazer. Senti-me desesperado de verdade.
“Cê não tem filho?”
“Não.”
“Quantos anos cê tem?”
“34.”
“Porra, e não gosta de criança? Por que não fez?”
“Sei lá, não tinha achado uma mina bacana…”
“E essa aí é da hora?”
“Conheci faz pouco tempo, mas parece que sim. Ela é muito legal.”
“É foda achá mina da hora. Cê vai voltá pra ela mano. Mas cê não vai pará pra falá com ninguém, com viatura nenhuma. Ou vai?”
“Vou nada.”
“A gente sabe sê mau, djôu. A gente vai te liberá, cê vai descê essa rua e pegá a direita, até a avenida. Vai ver umas viatura, mas vai tê uma moto te seguindo. Não para se não nós mete bala.”
“Claro, pode deixar.”
“E cê vai bloqueá os cartão depois de uma hora que saí daqui. Tá ligado?”
“Tô sim, beleza.”
“Tá ligado que dá pra pegá de volta esse dinheiro co banco, né? O banco devolve, e pá.”
Os calçados vermelhos se movimentavam à minha frente. Projetados neles e ao redor, aqueles olhos, sempre aqueles olhos místicos, já marejados pela preocupação. Vários pares deles, acima de um sorriso que se fechara.
“Acho que dá, né?”
“Cê é músico? Tem mó jeito de músico, e pá…”
“Sou nada. Toco uma coisa ou outra, mas só por brincadeira.”
Ele parou um pouco, em silêncio.
“Dá esse casaco aí embaixo”, cutucou o moletom que eu usava por baixo da jaqueta. Retirei-o, e passei a ele, vestindo o outro abrigo. Senti frio e me abracei.
“E o que cê acha de ladrão? Cê pensa o quê?”
Enquanto fez a pergunta, algo sólido cutucou meu ombro. Escolhi as palavras com muito cuidado.
“Cara, eu vejo lá na ONG como às vezes é foda garantir o sustento da família… Tô ligado que a gente é capaz de tudo pra alimentar os filhos…”
A resposta foi um grunhido, seguido pelo tilintar. Temi por ter dito algo errado, por ter soado leviano, e percebi que tudo poderia acabar naquele instante – naquele milésimo de instante. O rosto dela ressurgiu com absoluta clareza, os olhos mais abertos do que nunca, suplicantes. Apertei os meus com toda a força.
Nada.
O Puma Disc se afastou e voltou ao telefone.
“E aí, mano? Alou? ALOU? Já é? Ahn, suave… Vô soltá, vô soltá. Não mano, vô soltá. Vem parano nos baguio, e vai lá pra Vila Céu. Nós segue pra lá. Vô soltá, já falei!”
Veio em minha direção.
“Se liga, cê vai fazê o que te disse. Vai pegá a nave, seguí até o final essa rua, pegá a direita e descê até a avenida. Não para não, mano, nós vai tá te seguino. Nós pegô tua placa e te acha rapidinho.”
O rosto dela à minha frente parecia suspirar, em uníssono comigo.
“Claro.”
“Vai mano, desce.”
O toque gelado no pescoço me pôs em marcha. Desci a trilha sem jamais olhar para os lados ou para trás, escoltado pelo rapaz que vigiava a rua. Ao chegar embaixo, uma última ordem.
“Tira a jaqueta.”
Entreguei-a a ele e segui em direção ao veículo, temendo como nunca uma mudança súbita de planos. Tinha certeza de que, quatro metros acima, Puma Disc apontava uma peça para a minha cabeça.
Ao chegar à porta do carro, ouvi um novo sussurro.
“Ôu!”
Temi erguer os olhos, mas não tive escolha. Respondi com outro gemido, a respiração retida e um flash do rosto dela se contraindo.
“Qual é a senha do tablet?”
Expirei, novo alívio.
“9… 2… 1… 5…”
Entrei no carro e parti, seguindo com cuidado as direções do Puma Disc. Em dois minutos estava na avenida; e em dez, de volta à casa dela. Parei no mesmo local, e retirei do banco de trás as flores, que haviam se despedaçado um tanto. As flores sentem.
Quando a porta se abriu, surgiu o rosto enfim. Transtornado, desesperado, sem dúvida; mas era ele, o rosto que me salvou. Ao vê-lo, ao envolvê-lo, tive a certeza de que fora para isso que me mantive calmo, de que busquei lá dentro de mim os recursos de que dispunha para me manter vivo. Tudo ficou claro como o dia: vivendo numa espécie de limbo pelos últimos anos, eu saíra dele ao encontrá-la, um mês e meio antes; de modo que reencontrá-la, naquela noite dramática, era tudo o que importava. Não pretendia retornar para aquele limbo, e muito menos partir ou ser despachado para outro lugar. Só queria permanecer vivo para dar início a uma vida pela qual, agora percebia, ansiava intensamente.
Foi por isso que, no momento em que a enlacei para acalmá-la, para dizer que estava tudo bem, tive a certeza absoluta de que não queria mais soltá-la. Foi por isso que, em uma noite que eu jamais esqueceria por acontecimentos dramáticos, resolvi contrapor a eles uma pergunta. Uma simples pergunta, cujo significado seria maior do que qualquer estrago que a memória dos acontecimentos pudesse causar:
“Cristina, namora comigo?”
Ela aceitou. Por isso este relato, contrariando qualquer lógica, é improvavelmente feliz.
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Oscar Nestarez é pesquisador e escritor da ficção literária de horror. No campo da pesquisa acadêmica, possui Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e atualmente cursa Doutorado pela USP, tendo como objeto de estudos centrais a obra de Edgar Allan Poe. Como ficcionista, publicou Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura (ed. Livrus, 2013), as antologias Sexorcista e outros relatos insólitos (ed. Livrus, 2014) e Horror adentro (ed. Kazuá, 2016), e o romance Bile negra (ed. Empíreo, 2017), além de contos em diversas coletâneas. É também é colunista da Revista Galileu, em que aborda temas da ficção de horror.