O TEMPLO DE GANFERTON – ALMEIDA MAIA

Em Ganferton, o tempo dizia-se igual ao da Terra Alba. O céu era branco e brilhava mais do que dois sóis, o vento trazia pedaços de pólen e de amor de outros lados, os campos sustinham o peso do ar e as flores cresciam sem perder as cores. Os rios corriam ao inverso, para os grandes lagos nas montanhas, e a chuva só caía no mar. Os homens eram bons, nenhum lugar estava vazio, nenhuma alma perdida, nenhum namoro esgotado.

A Baía de Neuka amanheceu para outro dia, sem brumas nem calafrios. A enseada em ferradura era vasta como cem naus, mas aconchegada dos ventos setentrionais pelas vertentes colossais, salpicadas de fulvo, magenta e azul-celeste. Em Ganferton, os cultivos litorais eram quase sempre de tulísias, polaidos e frogas, os frutos que melhor se davam nos arejos marinhos.

Naquele dia, como noutros tantos, Ingrid saiu de casa e caminhou pela orla do rio, inspirando paz e deliciando-se com a brisa amável. As pessoas saudavam-na em ternuras, os pássaros cantarejavam, o mundo sorria-lhe a cada segundo. Tinha idade primaveril, bochechas rosadas e um cabelo loiro, que se dizia mágico. A face era a de um anjo, o sorriso enternecia corações, e o olhar esverdeado iluminava aqueles que a procuravam para cada novo milagre.

O rio Vestylt levava a água doce do oceano pelo Desfiladeiro de Mon — uma brecha na encosta rochosa, titanesca em altura, estreita como uma garganta —, percorria o Talvegue do Leste, até ao Grande Lago, e matava a sequidão a todos os seres, a todas as gentes. O mar era bebível e atraído para uma aerosfera densa, num fenómeno de dissipação que transformava o céu num lençol níveo.

Nas margens, pequenas casas em tom de argila encostavam-se às ruelas encantadoras. A luz do dia enaltecia os chãos de pedra lúgubre e realçava os telhados de barro. Junto ao estuário, um porto para quatro naus conquistava a serenidade do Mar Tardon. O corrupio era comum, a roda-viva dos marinheiros, os bravos exploradores dos confins. À roda do cais, mulheres elegantes escolhiam comida, especiarias, tecidos, joias e colares. Trajavam azuis-turquesa, verdes-esmeralda, brancos-pérola e outras cores claras, em vestidos com capuzes leves, saias médias ou camisas soltas. Quase todos os homens usavam chambre, corpete ou camisa aberta, beges ou castanhos-claros.

— Salve, menina Ingrid — reverenciou Helt, um velho que se debruçava numa bengala. — Precisamos de um milagre.

— Qual é o de hoje?

Helt franziu a cara para o mar, fungou e regressou:

— Os peixes andam a morrer.

Ingrid pôs as mãos nas ancas, apertou os lábios e apreciou o movimento da baía, o desembarque de mercadorias, as naus atracadas, o mar a estender-se até ao horizonte branco. Empurrou os cabelos para trás, levantou o capuz e seguiu em direção à urbe.

A mancha dos passeantes, na cidade, era harmoniosa, com movimentos gráceis, quase musicais, em acordes maiores. As moradias eram similares, a não ser o edifício central, no adro que ladeava as águas calmas. Chamavam-lhe a Praça dos Honrados e era o ponto de encontro para os que vinham, para os que iam e para os que estavam. Com a largura de trezentos passos, o rossio quadrangular era revestido a lajes, também elas quadradas, que formavam padrões na mistura do rubro, do negro e do marfim, num traço rodopiante e difícil de distinguir. Ao centro, o orgulho de Ganferton: o Templo Mayleor.

Ingrid parou defronte da edificação e abstraiu-se na sua grandeza. Imaginou como teria sido erguido, o tempo que custara e o suor derramado. Abandonou os pensamentos e invadiu pelas portadas, tão altas como árvores. Recebeu permissão de um indivíduo corpulento, antes do estreito acesso a uma escadaria descendente. Ela aventurou-se, degrau a degrau, mesmo com a luz a escassear e o ar a enfraquecer. Na direção oposta, subiam dois homens taciturnos. Ingrid continuou a descer, a descer, até que afastou a cortina alva que a separava de uma sala extensa.

Havia uma luz frugal que derramava pela engenhosa abertura no teto — um jogo de espelhos desde a superfície — e que desofuscava timidamente a vastidão. Sentia-se o aroma lento a livros, sem que houvesse sinal deles; via-se uma imensidão de colunas pintadas em azul-Majorelle, à distância de dez homens entre si, mas o mais impressionante era aquele palmo de água até perder de vista e, a meio, um trilho de tijolos barrentos a dividir a vastidão em duas.

Ingrid prosseguiu sobre a vereda, em passos seguros, demorando-se o tempo de pensar na vida, passada e futura, entregando-se à quietude da piscina rasa. Ao fundo da penumbra, evidenciou-se um vulto sobre um trono destacado.

A figura masculina tinha a classe de um leão, cabelo leitoso, rosto barbeado e um olhar tão profundo como o próprio amor. Trajava vestes simples, em tons barrentos, e falava como quem cultiva a paz.

— É bom rever-te, Ingrid — salientou. — Qual é a agrura do dia?

Ela cruzou os braços e virou-se para o lado, como se lhe negasse o direito à verdade, mas em alguns segundos abdicou:

— Os peixes estão a morrer.

O homem do trono arqueou as sobrancelhas e levantou-se com vagar:

— O que tens, Ingrid? A missão deixou de te interessar?

A mirar os pés e com o pensamento noutra dimensão, Ingrid suspirou:

— Como é que o fazeis, Javé? Como é que mudais as coisas num estalar de dedos? Desço com um problema e subo sem ele. Não me admirava se resolvêsseis as questões ainda antes de eu saber delas.

— É assim, em Ganferton. Mas há outras experiências, como bem sabes. Em Kulbeg o erro é suprimido. “Os peixes estão a morrer? Eliminem-se os peixes!” Na Terra Alba a aprendizagem é induzida. E outros exemplos mais.

— E por que não deixais as coisas serem o que elas são?

— Ah, pois… o caos, o livre-arbítrio. Já falámos nisso. Conheces algum mundo onde funcione?

— Talvez se aprenda melhor. Quem erra não repetirá o caminho.

Naquele ar subtérreo pairou a dúvida. Javé e Ingrid argumentaram e contrapuseram. Até que chegou o cansaço, e a menina das bochechas rosadas despediu-se e fez-se ao regresso. Trilhou pelos tijolos barrentos, subiu os degraus e desembocou na saída do templo, para a Praça dos Honrados.

Após cruzar o rossio, olhou para trás e questionou-se para que serviria o desmesurado santuário, se ninguém tinha problemas. As pessoas andavam despreocupadas e felizes, como se nada as pudesse retirar daquele estado. Era uma embriaguez de contentamento.

Atravessou as ruelas, até ao porto, onde ainda estava o velho Helt, apoiado sobre a bengala. Ingrid perguntou pelos peixes, ao que ele respondeu que estavam bem e recomendavam-se, sorrindo parvamente. Seria ela a única a questionar? Mais ninguém o sentia? Era possível que as sensações resultassem da missão que lhe havia incumbido Javé.

Anos antes, quando ela tinha apenas a idade em que as crianças começam a lembrar-se das coisas, Ingrid foi visitada pelo homem do trono e foi a protagonista de um ritual de velas e cânticos. Poucos anos mais tarde, a sua tutora do lar explicou que se atribuía a alguns escolhidos de Ganferton a responsabilidade de informar o Grande Javé das maleitas do povo, para que fossem resolvidas e a serenidade restabelecida. Eram os mensageiros da capital do mundo.

Com as lembranças frescas, Ingrid ladeou o rio e avistou a sua casa. Apreciou-a como se a visse pela primeira vez, como fazia com todas as coisas; dava-lhes o sabor da felicidade constante. Porém, ela começara a experienciar algo díspar, mais gutural. Ao espelho, via a boca decair, o queixo tremer, os ombros afrouxarem. Por vezes, era intenso ao ponto de os olhos deitarem gotas que lhe desciam pelas bochechas, de uma água com um sabor estranho.

Ali, diante das paredes que a viram nascer, Ingrid enfrentou as sensações e decidiu que estava na hora de atirar-se a uma nova realidade, como para um abismo. Virou costas e correu ao lado do rio, pelo porto, pelas ruelas, carpiu pela Praça dos Honrados, desceu a escadaria interior do Templo Mayleor, atravessou os tijolos entreáguas e estacou perante o trono vazio. Ainda ofegante, como se não houvesse ar suficiente para sobreviver, gritou por Javé, uma e outra vez. Ajoelhou-se e produziu as gotas dos olhos, esfregando a face com as mãos, soluçando e gemendo, num pranto genuíno.

Até que o vulto de Javé regressou, em passo vagaroso, perguntando o que tinha acontecido, ao que Ingrid acusou:

— É preciso mudar tudo! É preciso que os outros seres sintam o que eu sinto.

— A isso chama-se chorar, Ingrid.

— Dai-lhes o livre-arbítrio. Permiti-lhes escolher!

— Eles não serão felizes. Andarão a vida toda em busca da felicidade, quando ela apenas surge se não a procurarmos.

— Estar sempre feliz não é a felicidade. Ninguém é mais feliz do que quando ri e chora ao mesmo tempo — e riu-se chorando.

— Então, se és feliz agora, o que mais desejas?

— Que os rios corram para o mar, que o céu seja… azul! Que a água do oceano tenha o sabor das gotas dos meus olhos. Abandonai a escuridão da subterra, levai o trono para o cimo deste templo e ponderai cada pedido de salvação: se salvardes toda a gente, não restará ninguém para ajudar, não será preciso a vossa mão.

Javé manteve-se inalterado, o rosto impávido e os pensamentos desligados.

— Ingrid, se tal acontecesse, se eu não ajudasse todos os seres, eles passariam a eliminar-se uns aos outros, até à extinção, pela frustração de não terem o que desejam; despejariam a raiva e entrariam em conflitos que poderiam escalar para o que ainda não conheces: peste, guerra, fome e morte.

— Mas eu acredito! Eu quero que seja como eu digo!

— Acalma-te — Javé ergueu a mão e deixou o grito ecoar, ecoar pela galeria, pela água rasa, como se fosse necessário tempo para as palavras semearem ideias, como um pai a educar um filho arruaceiro, baixou o olhar e anuiu, prometendo: — Vou atribuir-te um mundo. Será um planeta azul e estável. Nele, poderás colocar um profeta em teu nome, à tua imagem, para espalhar as doutrinas que defendes. Essa tentativa ficará patente na sala principal do Templo Mayleor, ao lado dos outros ensaios, para que o povo de Ganferton acompanhe e critique a sua evolução.

— Que assim seja. Vou provar que a minha filosofia está certa.

— Não será fácil. Haverá séculos em que duvidarás da tua competência.

— Estou preparada — e limpou as lágrimas.

— Como desejas chamar esse mundo?

— Terra. Chamar-se-á Terra.

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Almeida Maia (Site) nasceu nos Açores (Portugal) e é psicólogo organizacional. Começou escrevendo poesia para música, crónica, romance policial, drama e foi coautor de dois livros infantis. No conto, assinou O Galheteiro de Prata (Antologia do Centro de Estudos Mário Cláudio, 2018) e O Abraço do Priolo (Enfermaria 6, 2020), entre outras contribuições. No ensaio, publicou O Parto da Saudade (grotta, 2020), iniciou-se no roteirismo com Islanders e regressou ao romance com a ficção científica A Viagem de Juno (2019). Prepara-se para editar o seu quinto romance.

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