O NOVO AMIGO – ANDRÉ BALAIO

O sol se multiplicava nos para-choques dos carros como olhos de fogo enquanto Ana lançava-se entre os espaços do engarrafamento. O calor refratado nos prédios lhe embaçou os óculos antes refrigerados no interior da clínica e, mesmo assim, preferiu não enxugar as lentes com o tecido da blusa. Que se desembacem sozinhos, pensou. Não tinha tempo a perder. Os miolos fritavam, o suor vertia da testa. As três quadras até a escola a deixaram escorrendo, quase derretida.

Não conseguia imaginar o filho fazendo algo terrível e, por isso, exasperou-se quando observou da porta a turma inteira na sala e constatou a cadeira vazia. Desembestou-se no corredor e voou pelas escadas, chegou sem ar à diretoria. O vento do ar condicionado na testa não foi suficiente para arrefecer-lhe a febre e gritou o nome do menino ao vê-lo sentado no sofá da antessala de cabeça baixa. Serenou apenas ao se aproximar e perceber que Gabriel desenhava. Abaixou-se e o envolveu num abraço. — O que aconteceu, meu filho?

Antes que ele respondesse, a porta do gabinete se abriu e a diretora da escola veio com a testa cheia de vincos. — Passei a manhã ligando para o seu marido e ele só foi atender agora há pouco.

— Bom dia, Dona Marta. Jonatas é encarregado da noite em uma fábrica, por isso dorme durante o dia. Depois que a senhora telefonou, ele me pediu para vir na frente porque trabalho aqui perto. O que houve?

A diretora ergueu um papel e o aproximou até quase esfregá-lo no rosto de Ana. — Veja o que o seu filho fez.

Precisou se afastar um pouco para enxergar. Era o desenho com quatro figuras de mãos dadas: um homem calvo de terno e gravata azul, uma mulher de vestido rosa, um menino de camiseta azul e bermuda vermelha e um ser magro todo vermelho de chifres e rabo pontiagudo. Embaixo, a legenda com as letrinhas precárias: Papai, Mamãe, Eu, Ele.

— Entendeu agora, Dona Ana? — disse Dona Marta com fagulhas nos olhos. Como não teve resposta, continuou com a voz ganida, quase chorando: A senhora sabe quem ele é, não sabe?

A respiração lenta e silenciosa da mãe, como num exercício de ioga, inflamou a diretora, que lhe pôs o dedo em riste.

— Pois eu lhe digo. É o demônio. Seu filho de mãos dadas com o demônio.

— Isso não quer dizer nada, Dona Marta. Gabriel pode ter visto a figura em algum desenho animado, talvez num filme ou livrinho.

— Que tipo de livro a senhora anda mostrando a ele, Dona Ana?

— Muitos.

— Quais?

— Histórias da bíblia, contos da carochinha, essas coisas.

— Sua família tem vida cristã?

— Claro que sim.

— Oram juntos todo dia?

— Todo dia.

— Vão ao culto semanalmente?

— Somos uma família normal, Dona Marta. Gabriel é um menino ótimo. Um pouco calado, é verdade, mas se comporta muito bem. Vou ter uma conversa com ele quando a gente chegar em casa, fique tranquila.

Alguém abriu a porta da frente e o vento espalhou os papeis desenhados sobre a mesa, levando um deles ao chão e fazendo Gabriel descer da cadeira para apanhá-lo. Foi Jonatas que entrou e permaneceu junto à parede com as mãos para trás. Ele observou a sala, a diretora e a esposa de través, com a cabeça levemente inclinada para baixo. Ana percebeu o mal-estar e aproximou-se do marido com movimentos curtos das mãos espalmadas para cima e para baixo, calma, amor, está tudo bem.

Dona Marta mostrou o desenho que ele segurou com as duas mãos. Permaneceu estático durante um longo segundo. Até que o rosto se contraiu numa carranca vermelha. Rasgou o papel com gestos largos e jogou os pedaços para o alto enquanto encarava o filho, impassível como uma TV ligada sem sinal. Jonatas avançou em sua direção, mas foi contido por Ana, que ficou à frente do garoto.

— Pare com isso, amor. Veja que não há motivo para esse temporal aqui na sala — e virou-se para o filho: Gabriel, que desenho era aquele?

— É a gente, mamãe.

— Eu sei. Quem é o homem vermelho?

— Meu amigo.

— Que amigo?

— Ele mora lá em casa. A gente brinca, sabe, a gente brinca de palavras, pega-pega, esconde-esconde.

— E como é o nome dele?

— Não sei. Ele não diz.

Jonatas fechou os olhos e murmurou um mantra indecifrável. Ana sentiu-se paralisada. O tempo travou e eles nunca sairiam dali. O marido era um estranho, tudo era estranho menos Gabriel, cada vez mais encolhido e apertado à mãe. Jonatas passou a mão pela testa e por cima da calva, andou até o meio da sala, ajoelhou-se, entrelaçou as duas mãos sobre o peito e mirou o teto.

— Oh, senhor, retira minha família do caminho das trevas.

A manhã terminou com os três em casa numa roda de oração. A esposa, preocupada com a hora de voltar à clínica, limitou-se a repetir o que Jonatas dizia. Como ele estava mais sereno e só trabalharia à noite, Ana entendeu que não haveria problema em deixá-lo cuidando do garoto. Recomendou, em voz baixa para que o filho não escutasse, que Jonatas mantivesse a calma e entabulasse uma conversa tranquila caso aparecesse outro desenho estranho. Gabriel permaneceu sentado à mesa da sala depois do almoço e esperou que a mãe tirasse os pratos sujos para começar a desenhar numa folha branca. Antes de sair, ela aproveitou o beijo de despedida para observar o que o menino rabiscava. Era um palco cheio de gente em que pontificava um homem de paletó com um microfone na mão. Ao lado, abraçado pelo homem, estava Gabriel. As pessoas em volta aplaudiam e outras tantas na plateia, com os braços levantados, saudavam o show. No fundo do palco, o amigo vermelho de chifres observava a cena e sorria. A mãe pediu o desenho de presente e o garoto disse que não, ainda precisava terminar. Está tão bonito, ela insistiu, me dá assim mesmo, vai ficar na minha mesa na recepção da clínica. Ele concordou. Ana desceu do prédio amassando o papel e o jogou na primeira lixeira que encontrou no percurso até o ponto de ônibus.

No trabalho, elogiaram sua energia e prontidão. Antecipou-se aos colegas na hora de atender pacientes e para pedir autorização aos planos de saúde. É verdade que perdeu a concentração em alguns momentos, chegou a perguntar três vezes o nome de uma senhora e ainda errou ao escrevê-lo na guia. Enquanto se abaixava para pegar uma ficha, deixou caírem os óculos por trás do colega Maurício que, distraído, recuou um passo. A pisada deformou a armação e estilhaçou as lentes, transformando os óculos numa massa disforme e inútil. Depois disso, sem poder contar com os olhos míopes, Ana limitou-se a atender ligações e passá-las aos outros funcionários. Para piorar, sentia os músculos doerem como se tivesse levado uma surra. Às quatro da tarde, tão logo encerrou-se o capítulo da reprise da novela, um senhor veio pedir que Maurício mudasse para um jogo decisivo do Barcelona. O atendente pegou o controle e zapeou uma miríade de canais na TV até parar no que devia ser um programa de auditório.

— Que danado é isso? — O paciente quis saber. Maurício descansou o controle sobre a bancada. Ninguém mais lembrou do futebol.

Apesar de não enxergar muito além de um borrão na tela, Ana percebeu que era um palco com uma moça gorda deitada de barriga para cima que se debatia enquanto era imobilizada nos pulsos e tornozelos por dois rapazes. Um homem de paletó e bíblia na mão apareceu e perguntou quem ela era, enquanto aproximava o microfone do seu rosto enquadrado em close. A jovem respondeu num rosnar incompreensível. O homem puxou o microfone de volta e encarou a câmera.

— Esse sofrimento vai acabar agora. Ao vivo, em rede nacional, vocês vão ver que eu vou salvar essa jovem do…, não, não vou dizer. Deixarei que ele se apresente. Quem é você?

— O capiroto — respondeu a moça com voz gutural.

— Quem?

— O diabo que tentou Jesus no deserto.

O auditório estremeceu num murmúrio que reverberou nos empregados e pacientes amontoados em frente à TV. O apresentador colocou a mão na testa enrugada da moça e gritou várias vezes para que o demônio saísse daquele corpo. A jovem parou de se revolver e, por fim, com o rosto desanuviado agradeceu o livramento. O homem de paletó gritou obrigado, senhor Jesus, e o público explodiu em aplausos e berros de aleluia.

— O que temos agora? — O apresentador perguntou à assistente, que trouxe um garoto de uns oito ou nove anos pela mão.

— Satanás — disse ela. — Satanás em pessoa ronda essa criança e se faz passar por seu amigo.

— Quem? — O homem disse com voz trêmula e tirou um lenço do bolso do paletó para enxugar a testa.

— Satanás! — a audiência respondeu num frêmito de surpresa.

— Pois então vamos ver se ele tem mesmo poder diante do senhor Jesus.

Ana se aproxima da TV e aperta os olhos. Quer distinguir rostos, imagens mais detalhadas do que esboços coloridos na tela. A assistente segura a testa do menino com a mão esquerda e prende a nuca com a direita enquanto o apresentador coloca a bíblia em sua cabeça.

— Te afasta dessa criança, demônio, vai embora em nome de Jesus.

O menino tenta se desvencilhar empurrando os dois sem sucesso. Fiéis sobem ao palco e amontoam-se em torno da cena. Repetem as falas do apresentador, abrem os braços, miram o céu. Aleluia.

Ana balança a cabeça. Onde está o pai? E a mãe? Por que deixaram o garoto com esses urubus? Ele é do tamanho do meu filho, não sabe de nada, devia estar em casa brincando como Gabriel. Será que Jonatas o está tratando bem?

Liga para o celular do marido duas, três vezes e ele não atende. Deve estar dormindo. Normal, precisa repousar para ficar alerta no trabalho à noite. Tenta o telefone fixo e este também chama sem resposta. Gabriel nunca atende, se isola do mundo, cria histórias, fala sozinho, rabisca carros, bonecos e jardins.

Ana já não entende o que as pessoas gritam na televisão, não vislumbra nada além de uma névoa. Os músculos dos braços e pernas se contraem, a boca ressequida permanece aberta enquanto as mãos e os pés enregelados transpiram. Aquela criança que lhe desconjunta os sentidos podia ser seu filho. Ainda bem que não é. A essa hora Gabriel deve estar com um lápis de cera na mão. Quieto, desenha a calma de uma casinha à beira do lago numa folha de ofício.

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André Balaio (Recife/PE) é escritor e roteirista. Com inúmeros textos publicados em coletâneas, teve seu conto O lado de lá vencedor do prêmio Off Flip em 2016. Publicou o livro Quebranto (Patuá, 2018) com 13 contos de literatura insólita. O livro foi finalista dos prêmios nacionais SESC e CEPE, e vencedor do Prêmio Vânia Souto Carvalho da Academia Pernambucana de Letras como melhor obra de ficção do ano. É autor dos roteiros de diversas histórias em quadrinhos publicadas, incluindo a adaptação do livro Assombrações do Recife Velho de Gilberto Freyre (“Algumas Assombrações do Recife Velho”, Global Editora, 2017). Colaborou no roteiro do longa-metragem Recife Assombrado lançado em 2019. Atualmente prepara um romance e um livro de contos.