Cesário do pão nasceu e se criou em Serra Azul, uma terra enigmática, isolada do mundo, repleta de causos e histórias transcendentais. Por muito tempo, Serra Azul recebeu somente contatos terrenos através dos radinhos de pilha do padre Aderaldo ou do padeiro João Pirela. Por essas e outras, Cesário do pão começou a trabalhar na padaria improvisada de João, a fim de colher alguma informação e se conectar com o mundo.
De primeiro, arrumava as prateleiras, os potes, as bacias e asseava o ambiente, antes tomado de bolor. Chegava com os galos e ia, sempre, pôr ordem nas variedades, que, de mais a mais, não conseguiam lotar o armazém de vinte e cinco metros quadrados.
Então, ganhando os quereres do patrão, por ser dedicado, deixou de ser o reles Cesário de Mundico, para ser, enfim, Cesário do pão. A alcunha vinha não só porque trabalhava com pão, mas, sobretudo, em razão do pagamento in natura; ou seja, recebia um bocado de pão e revendia para os locais. Daí, tirava o seu sustento.
Sendo homem novo e trabalhador, tinha por onde se engraçar com Anunciação, a vizinha calada e tímida, mas de sorriso contagiante, que pegava de jeito o coração de Cesário.
Não havia, assim, traquejo de sua parte. Contudo, Cesário se achegou, muito cuidadoso, à dona Dica, sua mãe; e entregava, quase que semanalmente, um bocado de pão e bolo fofo, ou formigueiro, seu predileto, para amolecer a aura da velha ranzinza, sempre ciosa, colada à barra da saia da menina.
Cesário do pão tinha um sonho. Ouvia, pelo radinho, as notícias de um tal progresso, para as bandas do Sul; que lá carecia de trabalhador. Imaginava que não poderia ser gente assim, onde as oportunidades lhe puxavam para o roçado, geralmente seco e estéril, ou para o comércio – esse sem chance, porque não tinha pai endinheirado, nem parentes, nem aderentes.
Dinheiro vivo era uma raridade; só quando João Pirela fazia uns acertos com o padre Aderaldo para distribuir pães em quermesses – ou, se muito, nuns festejos esporádicos; aí, sim, molhava a mão, mas apenas o suficiente para comprar um pacote de feijão, um de arroz e uma galinha abatida.
Ia se chegando devagarzinho, com toda paciência do mundo, mesmo ouvindo de dona Dica os maiores impropérios: “Homem é bicho safado; homem é cachorro do mato, só presta na peixeira; homem, que nosso Senhor me perdoe, é jogado na terra para produzir e desgraçar as mulher!”; levantava a cabeça e seguia o que ditava o coração: conquistar, de uma vez por todas, Anunciação. E, sem ter trocado palavra, ainda, sentia pelo reflexo amolecido de seus olhos como se estivesse pedindo socorro.
Até que, num sábado inclemente, abrasador, partiu para a Rua 2, casa 5, decidido a pedir a mão de Anunciação. Entrou intrépido e, segurando as delicadas mãos da donzela, declarou a sua paixão, aos olhos esbugalhados de Dica, não acreditando no atrevimento. Disse que já tinha dinheiro suficiente para se ajuntarem e que, por obra de Nosso Senhor, havia conseguido uma casinha emprestada do padre Aderaldo, o qual se dispôs a auxiliar na empreitada amorosa, porque confiava muito no “menino trabalhador e temente a Deus”.
Dona Dica foi tomada pela surpresa e, atada às confidências e às necessidades de salvação, jamais contrariaria o padre Aderaldo, homem santo, que a ajudou a sair do fundo do poço, quando da perda do homem que abandonou casa com tudo, nos idos da década de setenta, para fugir com a rapariga mais faceira do cabaré de Décio Mão de Peia.
Se era assim, com os poderes de padre Aderaldo, não seria capaz de contrariar as vontades de Deus. Logo, os alegres jovens arrumaram os trapinhos, se aprumaram nos chamegos, e com poucas doações, tais quais uma caminha velha e meia dúzia de panelas desgastadas, e apenas três meses de namoro, noivado e preparação, selaram o futuro, na igreja São Miguel Arcanjo, sob os auspícios e as bênçãos de padre Aderaldo – e uma multidão, de cerca de duzentas pessoas, toda a população do lugarejo, para, principalmente, conferir o grande acontecimento.
No primeiro ano, nasceu Edmundo; no segundo, Eliomar; no terceiro, Adalgisa; no quarto Albaniza. E Cesário do pão cismou de se debandar para São Paulo, que ali não tinha mais de onde tirar. A mulher se aperreou, vendo a sina da mãe, com o abandono do pai. “Não, meu bem, se avexe não; o negócio é melhorar a vida desses menino. Nós tem que dar um futuro pra eles. Nós vai tudim, não fica nenhum!”.
Cesário do pão foi mexendo os pauzinhos. Com o seu jeito afável, foi se chegando ao caminhoneiro Rinaldo, de Fortaleza, conhecido de longas datas, a quem preparava um cafezinho, bolo, tapioca e bolacha, para o homem seguir viagem. Rinaldo, também, era cria de Serra Azul; passava para visitar os avós e aproveitava para fazer uns fretes e trazer mantimentos; mas se foi embora muito novo, junto dos pais, com o mesmo objetivo que agora perturbava o juízo de Cesário: buscar uma vida melhor.
Não foi escolha de Rinaldo, teve de ir com os pais; e, sempre que perguntavam, declarava que sair de seu lugarzinho é muito arriscado: “Se pudesse escolher, preferiria uma vida tranquila, no meio dos matos. Na selva de pedra ninguém sabe nem que a gente existe. Só muita sorte e fé em Deus para conseguir superar as dificuldades”. O intuito não era desanimar Cesário, mas fazer com que pensasse nos prós e contras; na mudança de vida e de realidade. Reforçava: “Cumpadi, cê vai sentir o baque; é grande, é pesado, mas, se quer mesmo ir, vamo simbora!”.
Rinaldo decretou: “só posso levar você agora; depois, dou um jeito de levar o resto”. De fato, não havia espaço; a boleia estava entupida de bugiganga e, além do mais, levava Derci, a famosa quebra-galho da região.
Cesário se despediu da mulher, para a qual deixou todo o dinheiro que possuía – cerca de duzentos reais, no dinheiro de hoje –, e derramou-se ao beijar e abraçar os filhos, que, como em coro fúnebre, desandaram a chorar, sem saber exatamente por que o faziam. Só o mais velho, Edmundo, pediu, com ares de desolação, que o pai não demorasse, e não se esquecesse deles. Cesário olhou com ternura e aquiescência; de sua boca expeliu um sim magoado, desafogado. Anunciação ficou com as crias, sendo falada noite e dia; mais uma abandonada, desgarrada da sorte.
…
No caminho, estradas sem fim, que o punha atarantado, chegando a ver oásis no asfalto. Ainda tinha de aguentar os arrochados gozos de Rinaldo e Derci; era como se não estivesse ali, praticamente uma alma penada. E, quando paravam para ir ao banheiro ou comprar alguma coisa, Cesário comia os pães dormidos e alguma bolacha; as frutas, seis, guardava para a oportunidade derradeira. Sonhava em conseguir um bom emprego e mandar, logo, dinheiro à Anunciação. E não parava de pensar nos meninos, em quando poderia voltar a vê-los, e pediu, numa brechinha que dava, auxílio a Rinaldo, que decretava, aos gritos: “Quando der, homem; quando der!”.
Os dias foram passando e a amizade que pensava existir com Rinaldo era, mesmo, fiapo; não valia nada. O caminhoneiro comia de tudo, fartura no almoço e no jantar, mas dedicava ao pobre Cesário o que sobrava de arroz e uns ossos de galinha, para chupar, ou se conformar com o ínfimo tutano.
Cesário se assustava com a perversidade humana; como seria quando chegasse a São Paulo, sem um pé de gente para lhe acudir?! Lá no fundo, sentia que Rinaldo seria seu abrigo; mas, não, a longa estrada mostrou exatamente o contrário. Rinaldo já não era servido por Cesário, nas boas comilanças do armazém; via-o, agora, como um qualquer.
Cesário se abatia acuado na boleia; tremia-se de medo, mas, pronto, pensava em mudar o destino dele e de sua família: queria ver os meninos estudados, com boa moradia e bem alimentados.
Em dezesseis de março de 1993, Cesário foi jogado da boleia por Rinaldo, com um certeiro pontapé; porque fedia; porque era preguiçoso; porque, agora sim, ia aprender a ser gente; porque era um pé-rapado fodido, tinha mais de se ferrar. Despediram-se assim, Rinaldo rindo e Cesário chorando, alojando-se no Viaduto do Chá, reduto antigo dos degredados da vida.
Lá conheceu Antônio, há seis anos nas ruas, igualmente vindo do Norte. Antônio fez o obséquio, em suas palavras de cavalheiro, de homem estudado, de oferecer um colchão desocupado, “para descansar o corpo” – intuía o desastre de Cesário, pelo rosto, pela carcaça aquebrantada.
Nos meses que se seguiram, Cesário tentava, batia de porta em porta, nas padarias e cantinas das redondezas, e o que lhe ofereciam, além de chacotas em demasia, recriminando o seu porte nordestino, era, no máximo, um pão velho na chapa ou leite prestes a vencer.
Com uns trocados no bolso, depois de aprender a mendigar, com quatro meses na penúria, conseguiu ligar para a mulher. Anunciação chorava do outro lado, desesperada, imaginando que era uma visagem, algo do tipo; não era possível que o marido estivesse vivo e, ainda por cima, preocupado com ela e os meninos. Chorava de amor e de vontade de correr para socorrê-lo. Pensou, ingênua, de ir a pé para São Paulo, no que foi imediatamente desencorajada por Cesário, dizendo que a mulher não teria ideia do mundão que atravessaria; se atravessasse.
Não falou da vida precária, das dores, das tremendas aflições – Cesário sofria da desesperança: de que não conseguiria voltar; não tinha quem lhe desse carona; demoraria uma infinidade de tempo para conseguir um dinheiro para a passagem; talvez, numa hora dessa, pudesse dar um fim ao suplício de viver.
Anunciação, por outro lado, cria numa virada. Achava, pela voz artificial de Cesário, que o homem se ajeitaria. Mas não deixou de pedir que voltasse: fosse o que fosse, arrumariam um jeito de driblar a seca, a morte; que, bem ou mal, tinha a mãe, a sua família, e com o pouquinho de cada um escapariam.
…
Cesário definhava, progressivamente. Antônio via que não era doença do corpo; era mais sério: da alma. Oferecia tudo no mundo para Cesário, até cachaça, para o reanimar; mas o homem enjeitava o pão, a bebida e a vida.
Prolongou os dias de labuta na Praça da Sé. Oferecia serviços de limpeza, engraxate; pastorava os carros e, no máximo, conseguia um vintém para comer uma refeição – escolhia: o almoço ou a janta. Aproveitava a caridade, vez em quando, para tomar uma sopa, comer um sanduíche e se livrar da dor da fome, nunca sentida no sertão.
Ofendeu-se, decididamente, com a existência inumada. Irresignado, pegou uma faca de cozinha jogada no chão, quando uma senhora passava cheia de compras, e, pela primeira vez, atreveu-se a assaltar. A arma caiu no chão. A senhora gritou: “Ladrão! Ladrão!”. Ávidos por sangue, sem nem ao menos saber do que se tratava, se de fato o homem teria roubado e o quê, começaram a chutá-lo na barriga. Cesário se virou; arrebentaram-lhe as costas com um pau graúdo. Cesário quis correr, para se livrar dos ataques, mas não sentia as pernas. Rebentaram, num golpe seco, sua cabeça.
Os cachorros, os pombos e os policiais acompanhavam. No fim, foram os cachorros e os pombos se digladiar por miolos, enquanto os policiais chegaram lentamente e deram mais chutes, para comprovar a morte, e, por insistência de uns moradores de rua, chamaram a ambulância e o rabecão.
No jornal, uma nota de rodapé: “Homem rouba idosa e é apanhado pela população. Não resiste à fúria de um país entregue à bandidagem e morre antes de chegar ao hospital. Sem documentos e sem familiares, será enterrado hoje como indigente”.
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Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor dos livros Flor no caos, 2018 (Desconcertos Editora), e Contículos de dores refratárias, 2020 (Editora Penalux). Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados nas Revistas Acrobata, Berro, Brasil Drummond, dEsEnrEdoS, Diversos Afins, InComunidade, Lavoura, LiteraturaBr, Literatura & Fechadura, Mallarmargens, Mbenga, Mirada, Pixé, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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(Imagem Pablo Ruiz Picasso)