O HOMEM GAY EM FOCO: O CINEMA DE MARCO BERGER – CHARLES BERNDT

Coluna | Lorca


Às vezes, o que me entristece quando penso sobre filmes que abordam temáticas relacionadas às pessoas LGBTQIA+ é constatar que com frequência essas produções, infelizmente, ficam presas numa espécie de nicho cultural – se você não é um homem gay, por exemplo, dificilmente assistirá filmes como os dirigidos pelo argentino Marco Berger, que também é roteirista e produtor, nascido em Buenos Aires, em 1977.

Assumidamente homossexual, todos os filmes de Marco Berger trazem abordagens e conflitos do mundo gay. Uma das marcas dos seus filmes é a exploração do silêncio – longas cenas em que os únicos sons que ouvimos são os pequenos barulhos do interior de uma casa, o farfalhar de uma cortina, o barulho do vento ou da respiração de alguém. Ao lado desse silêncio, temos uma câmera que valoriza os pequenos gestos dos personagens, os seus olhares, o modo como se sentam, deitam, caminham – impossível não reparar, ainda, no modo como a câmera foca no corpo masculino, nos seus músculos, nos seus pelos, nos detalhes dos corpos dos homens quando se deitam, praticam esportes, se beijam ou fazem amor. 

Marco Berger dirigiu e roteirizou dois curtas-metragens (Una última voluntad, de 2007; e El reloj, de 2008) e sete longas (Plan B, de 2009; Ausente, de 2011; Hawai, de 2013; Mariposa, de 2015; Taekwondo, de 2016; Un rubio, de 2019; e El cazador, de 2020).

Em outros textos, cheguei a citar os filmes Plan B e Taekwondo, dos quais gosto imenso. Em ambos percebemos os elementos dos quais já falei – somos presenteados, a todo momento, com cenas em que o corpo masculino está em evidência. Assim, o que vemos nesses filmes é verdadeiramente um culto ao corpo e ao desejo masculino. As personagens femininas praticamente estão ausentes. No mundo de Berger, para nosso deleite, é como se só existissem homens gays. Em parte, podemos compreender o porquê dessa escolha: num mundo ainda tão homofóbico e heteronormativo, em que praticamente todas as narrativas giram em torno de relações heterossexuais, pelo menos nas obras de artistas como Berger os gays e suas relações ocupam um lugar central.

Em 2019, Marco Berger deu uma entrevista para o jornalista espanhol Juan Roures (pode ser acessada em sua íntegra neste link: entrevista Marco Berger), em que comenta sobre os aspectos estéticos e temáticos de seus filmes, sobre os prêmios que recebeu e de onde retira a inspiração para os roteiros que escreve. Destacamos um pequeno trecho, em que o cineasta comenta sobre o público de seus filmes e sobre o rótulo de “cinema gay” que costumeiramente lhe é aplicado:

[…] hago películas para mí y quien las quiera ver, o sea, para todo tipo de audiencias. Nunca decidí hacer cine gay, hago un cine donde plasmo mi mirada y cómo veo el mundo. Cómo me relaciono yo con el mundo. La etiqueta aparece después… y la agradezco porque hace que mis películas se distribuyan en muchos festivales, pero no la busco de antemano. También es cierto que hay un prejuicio cultural: nadie piensa que Pretty Woman (Garry Marshall, 1990) sea una película para prostitutas y millonarios, pero, si una película trata sobre gais, muchos creen que es para gais y por tanto, si un heterosexual va a verla, parece que algo esconda.

Tradução nossa: […] faço filmes para mim ou para quem os queira ver, ou seja, para todos os tipos de audiências. Nunca decidi fazer cinema gay, faço um cinema onde coloco meu olhar e como vejo o mundo. Como me relaciono com o mundo. O rótulo surge depois… e sou grato a ele porque faz com quem meus filmes sejam distribuídos em muitos festivais, mas não as busco de antemão. Também é que certo que há dano cultural: ninguém pensa que Pretty Woman (Garry Marshall, 1990) seja um filme para prostitutas e milionários, mas no caso de um filme que fala sobre gays, muitos acreditam que é para gays e, portanto, se um heterossexual vá assisti-lo, é como se houvesse algo a esconder.

De modo a convidá-los pare que assistam aos filmes de Marco Berger e de outros cineastas gays, contribuindo minimamente para que essas obras transcendam seus nichos culturais, apresento a seguir uma pequena crítica, ou seja, um breve comentário sobre um dos últimos filmes desse cineasta argentino – Un rubio, lançado em 2019.




Un rubio: entre o desejo e a necessidade de manter as aparências

contém spoilers

Lançado em 2019, neste filme acompanhamos a história de um homem que descobre sua atração por outros homens através do colega de apartamento.

Gabriel (Gaston Re) é então o “rubio”, isto é, o homem loiro que se mudará para o apartamento de Juan (Alfonso Barón) e despertará a sua homoafetividade.

Em verdade, o ponto mais interessante do filme é perceber o modo como esses dois homens lidam com seus sentimentos e o desejo que sentem um pelo outro – o jogo de conquista e dominação do mundo masculino é constante. Depois de longas cenas em que ambos se encaram com volúpia, em que flertam, tocam-se de leve e sentem o hálito e o cheiro um do outro, finalmente ocorre a aproximação decisiva. Juan e Gabriel se beijam, dormem juntos e passam, aos poucos, a construir uma relação afetiva.

Gabriel, que é viúvo e tem uma filha, é o mais sensível dos dois, é aquele que de fato parece estar apaixonado e seu comportamento é bastante submisso com relação ao outro. Juan, por outro lado, vive uma vida dupla e não parece disposto a renunciar a imagem de homem hétero e “pegador” que construiu para si. Apesar da relação com Gabriel, ele continua se encontrando e mantendo relações sexuais com uma garota. Em determinado momento, de modo a viver uma relação com Gabriel, ele parece disposto a romper com ela, mas é surpreendido ao ouvi-la dizer que está grávida. Então, o filme nos coloca diante de uma situação bastante comum: o homem gay decide voltar para o armário, renunciar a sua felicidade e o seu desejo, para corresponder à imagem que a sociedade construiu para todos os homens ao longo dos séculos: casar-se com uma mulher e ser pai. Entre assumir seu desejo ou manter as aparências, Juan acaba escolhendo a segunda opção.

Gabriel, por sua vez, é o personagem que definitivamente transcende barreiras e que acaba por transmitir a mensagem de libertação e amadurecimento que o filme de Berger deseja passar: após romper com Juan, ele parece estar decidido em não voltar atrás, em viver conforme sua natureza e não mais se esconder. Na última cena do filme, o espectador acompanha uma conversa entre pai e filha, em que a menina reage com naturalidade quando Gabriel revela que tinha um namorado e não uma namorada. A filha de Gabriel representa justamente essa nova geração de seres humanos do século XXI, capaz de enxergar e compreender com naturalidade e sem preconceito a diversidade da sexualidade humana.

Além da história que nos é contada, Marco Berger em Um rubio nos encanta, uma vez mais, com uma câmera minuciosa, que capta com delicadeza a beleza do corpo masculino e a fragilidade dos dois personagens principais, visível por meio dos seus olhares e gestos.

_______________________
Charles Berndt (Instagram) é professor e cursa seu doutorado em literatura na UFSC. É viciado em utopias, em palavras etéreas, mas ainda não foi pra Nárnia por acreditar que dentro deste mundo há um outro possível, mais justo, sensível, igualitário e fraterno. Mantém uma coluna mensal na revista literária Vício Velho.