CAVALCANTE – JORGE IALANJI FILHOLINI

Capítulo I

Faz anos, Seu Eusébio Velho

Cavalcante nasceu há mais de cento e cinquenta anos no dia do último suspiro do cavalo de Seu Eusébio Velho. Foi aqui, nestas terras de planícies desiguais, o dito Velho se instaurou meses depois de fugir da guarda da periferia da cidade de Piraíba sem bolsa nem mantimento, apenas com uma joia de duzentos arroubas, saltou no lombo do finado Cruz e Solto para cavalgar mais de quinhentos quilômetros, sem trégua ou descanso, em um areal de cobrir canelas de gigantes. Seu Eusébio Velho, inquieto, continuou a sua escapada. Contam que ainda se escutava os gritos de ódio do Barão Crisóleses reverberando em crânios de cabritos pelo caminho de fuga de Seu Eusébio Velho, assim está escrito nos livros de Divino Suazul – a cabeça do fugitivo valia o dobro da dita joia roubada. Após a fuga, Seu Eusébio Velho, diante da fome, comeu as carnes frágeis de seu companheiro de viagem, morto três Luas Côncavas anteriores. Ele esperou o sangue esfriar para devorar os músculos de seu saudoso animal. Cravou o fêmur esquerdo em solo onde hoje é Cavalcante. Determinou ali ser o epicentro de sua futura realização monumental. O Parque Central em memória de Cruz e Solto. Seu Eusébio Velho, agora sozinho, não desistiu, cavou, com a ajuda dos cascos ósseos de Cruz e Solto, o primeiro poço de Cavalcante, hoje desinstalado e exposto no Museu Municipal. Dizem que durou três dobras das Nuvens Condorsais para Seu Eusébio Velho saborear o líquido – improvisando uma caneca com o metacarpo de Cruz e Solto -, que banharia as planícies do lado de lá de Santarrita Imensa. Foi com a cartilagem costal do mesmo Cruz e Solto que Seu Eusébio Velho demarcou a cidade. Transformou as fronteiras em bosques com plantações de morangos vindos de TerraSã, medindo as entradas estratégicas das zonas sul e leste, os fios de seus longos cabelos em arame-farpado, para evitar os ataques das manadas dos Minotauros de Quiosq, o Forte de Manicaísa e as florestas de palmeiras na avenida principal de Cavalcante foram plantadas pelos mestres nativos das regiões Joasá. Ainda está guardada esta famosa régua-óssea estabelecida pelo nosso fundador, muitos a quiseram comprar, mas Seu Eusébio Velho não quis nenhum arremate. Vieram propostas de todos os lados. De Assumá até Essiá. Seu Eusébio Velho só dizia não. Aquela improvisada régua era o último resquício ósseo de seu eterno companheiro de cavalgada. Em seu famoso livro “As 348 crônicas de Cavalcante”, Divino Suazul explicou a construção das primeiras casas daqui. As barbas de Seu Eusébio Velho cresceram tanto até ficarem distantes de sua vista. Resistentes, as barbas foram utilizadas como guindaste e, madeira em cima de madeira, fez-se a primeira obra, a capela de São Fanziotto, avô de Seu Eusébio Velho e escolhido o padroeiro da cidade. Depois vieram os casebres, a mercearia e os castelos. Exigido de no máximo três saltos, para não esconder a claridade vermelho-laranja das estações de Sóisjas. Cavalcante fica no sudoeste do sertão de Monte Mãe e a seiscentos e trinta e sete quilômetros do litoral de Porto Lourenço. Seu Eusébio Velho penou para finalmente adquirir a assinatura do Rei Péricles IV na escritura da cidade, autorizando, então, a cidade a fazer parte do mapa. Bem aqui, onde podemos ouvir os cochichos dos Bantipas, as colheitas anuais dos tuca-donos e os pulos dos Coximcas, prontos para o acasalamento na superfície do Lago de Chorapais, que tem esse nome devido as perdas dos filhos no naufrágio da fragata de San Hobbes durante a primeira grande Batalha das Matas de Fostes-e-Clãs. Mas essa marcante história ficará evidente no quinto volume da Saga do Skinkin.

A cidade de Cavalcante comemora hoje o aniversário de duzentos anos de nosso fundador, Seu Eusébio Velho, a lenda viva, perdurando essas décadas todas observando, estudando e compartilhando de seus conhecimentos para a população e pelo solo, hoje antigo, desta cidade. A festa será no Parque Vera Lokermann, na área sul de Cavalcante, no horário de Porto Lourenço, ou seja, quando o ponteiro bussolar estiver iluminando o telhado da última torre do Castelo de Luntuaru. Não se atrasem. Vocês viverão a história. Após muitos anos – eu ainda não tinha nem escapado do colo de mamãe -, Seu Eusébio Velho aparecerá em público. Decidiu comemorar conosco o seu Dia-conquistador. Saberão pela voz do primeiro a pisar na areia bamba de Cavalcante, os tantos relatos de construção de nossa morada. Faz anos, Seu Eusébio Velho.

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Nota editorial: este é o primeiro capítulo, publicado exclusivamente pela revista Vício Velho, de Cavalcante, primeiro romance, ainda em desenvolvimento, de Jorge Ialanji Filholini.

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Jorge Ialanji Filholini é escritor e produtor cultural, publicou os livros de contos “Somos mais limpos pela manhã” (2016) e “Somente nos cinemas” (2019).

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