Coluna | Terra Treva
O POUCO CONHECIDO IMAGINÁRIO ASSOMBRADO PAULISTA
Quando olhamos para a historiografia da literatura de horror, somos obrigados a chegar a uma dolorosa conclusão: o Brasil, à primeira vista, não participa dela de forma significativa. Em consequência, nossos territórios não se juntam à Transilvânia de Drácula, à Londres dos horrores vitorianos, ao Maine de Stephen King e a tantos outros espaços consagrados pelos clássicos do gênero. Mesmo quem lê e conhece o horror nacional precisa espremer a memória para encontrar localidades geográficas que sejam associadas às histórias sinistras. Sim, temos o sertão como espaço propício a assombros e arrepios — inclusive transformando-se no tópos de autores contemporâneos, como o potiguar Márcio Benjamin. No entanto, conforme nos lembra Guimarães Rosa, “Sertão: é dentro da gente”; ou seja, mais um espaço interior do que de fato uma mancha no mapa.
Por outro lado, quando observamos com mais cuidado o território brasileiro, chegamos a uma conclusão bem menos frustrante do que a primeira: a de que estamos em um campo absurdamente fértil para as histórias que se propõem a causar o efeito estético do horror. Vinte e seis estados (mais o Distrito Federal) e milhares de municípios tão diferentes entre si, todos compondo um universo quase infinito de possibilidades, temas, além de topos. E uma breve investigação da nossa historiografia literária revela que escritoras e escritores vêm explorando esses meandros desde o século 19. Acontece que, por inúmeros motivos que aqui não cabe debater, a tônica dominante de nossa produção — de cunho realista — impediu que essas expressões soassem com mais intensidade pelo mundo afora, ou mesmo no Brasil.
Em todo caso, nada como um dia após o outro. Desde meados dos anos 2000, o interesse do público brasileiro (e, em consequência, do mercado editorial) por narrativas de horror só aumenta. São diversos os indícios dessa mudança: o surgimento/crescimento de editoras focadas exclusivamente no segmento (como a Darkside), ou de selos de grandes editoras criados com essa finalidade (como a Suma, da Cia. das Letras); a formação da ABERST — Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror —, constituída nos moldes de organizações norte-americanas e europeias de autores com o objetivo de fortalecer a literatura de gênero no mercado nacional; e o estabelecimento de premiações específicas para a categoria, como o próprio prêmio da ABERST, que foi criado para contemplar narrativas policiais e de horror, bem como a categoria “romance de entretenimento” do Jabuti, que, em 2020, teve obras de horror entre as finalistas, e o Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica, instituído em Porto Alegre (RS).
Como resultado, temos um inegável fenômeno editorial. No instante em que escrevo, segue crescendo o número de leitores e de ficcionistas da literatura de horror pelo país. Assim sendo, é natural que, a partir de um certo momento, tanto fãs quanto artistas busquem ler e criar histórias mais próximas de si, com personagens mais familiares, causando arrepios mais conhecidos. Em consequência, torna-se natural o aumento do interesse por narrativas de horror regionais, que reflitam ou tematizem as singularidades de um determinado espaço geográfico brasileiro. Aquelas particularidades do nosso pedacinho de mundo que conhecemos como ninguém — ou melhor, como ninguém além de nossos vizinhos e conterrâneos.
É neste vibrante e promissor contexto que despontam narrativas de horror situadas em um espaço ainda mais improvável: o interior paulista. Um exemplo é o romance Terra de sonhos e acaso (Martin Claret), publicado em 2019 pelo paulistano Filipe de Campos Ribeiro. O título remete a Rio das Almas, cidade fictícia que abriga a trama e que também descobrimos ser o típico município interiorano de São Paulo. É para lá que vai Ismael, o protagonista e narrador, depois de enterrar o pai, morto em consequências da AIDS (a mãe falecera anos antes, após contrair o vírus do marido). O intuito do rapaz é vender uma casa onde passou parte da infância e reencontrar Henrique, o melhor amigo que se mudara para a cidade. Ao chegar, Ismael constata que algumas ocorrências apartaram Rio das Almas do restante do mundo. A cidade foi devastada por tempestades, encontra-se sob intervenção militar e seus habitantes estão acuados por crimes tão estranhos quanto violentos. O lugar está irreconhecível. As afetuosas memórias da infância de Ismael dão lugar a uma atmosfera de hostilidade e tensão. Aos poucos, ele percebe que está profundamente ligado àquela terra insólita. E é nesse processo revelatório que reside a principal força da história de Filipe: a investigação do assustador imaginário paulista e, em menor grau, brasileiro; a busca por particularidades que o definam – pela via do horror, claro.
Outro exemplo de assombros interioranos é a coletânea Dossiê de Causos Mal Resolvidos, publicada recentemente em versão digital no site da Amazon. No próprio título, já temos um indício de onde se desenvolverão as quatro histórias de diferentes autores que compõem o livro: trata-se do termo “causos”, tão comumente associado ao “interior caipira”, como postulou Antônio Cândido, e que aqui apontam para a região paulista. Mais especificamente para a cidade de São José do Rio Preto e seus arredores, no noroeste do estado. Até podemos imaginar a grande interrogação que se desenha nos rostos de aficionados e aficionadas do horror: “histórias assustadoras em São José do Rio Preto?”
Essa mesma pergunta foi feita pelo organizador (e autor de um dos contos) Lucas Pelegrino. Mas a dúvida dele, que também atua como produtor executivo de cinema, tinha outro viés: “por que não histórias assustadoras em São José do Rio Preto?” Afinal, a cidade — uma das maiores do interior paulista — tem suas lendas, seus contrastes, seu rico passado. Por que não explorá-los literariamente pela via dos assombros? Por que não ouvir o que a própria terra tinha a dizer de assustador? Por que não fechar o livro de Stephen King e abrir os olhos para os mistérios e as monstruosidades dos arredores?
É de se deduzir que Pelegrino não estivesse sozinho em suas indagações. O Dossiê começou a tomar corpo com a chegada de outros três autores, que também participaram da concepção do projeto: o roteirista e professor Diogo Augusto Gonçalves, o também roteirista e pesquisador Rafael Montassier e o escrevente Lucas Oliveira. Nascidos na cidade ou a ela ligados, os quatro decidiram responder àquelas perguntas por meio da ficção literária. O resultado desse trabalho revela não apenas que São José do Rio Preto pode, sim, ser uma terra assombrada, mas também que as estratégias e os agentes do assombro podem assumir aspectos bem diferentes.
Afinal, o Dossiê é composto por quatro narrativas bem distintas entre si, tanto em relação às temáticas quanto às subcategorias do horror. No primeiro conto, “Vírus”, Diogo Gonçalves imagina um cenário de terra devastada pelo que parece ter sido uma “pandemia intelectual”. Trata-se da história de um personagem sem nome que passa os dias fugindo de estranhas criaturas, perambulando pelas cercanias de Rio Preto, e o território acaba sendo fundamental para a sua sobrevivência até ali.
Rafael Montassier, por sua vez, elabora um conto em que o horror se produz por meio da ficção científica, à maneira dos clássicos de Mary Shelley, H.G. Wells, entre outros. Em uma intrincada narrativa que incorpora perversos experimentos biológicos e masculinidade tóxica, “Vetor” nos apresenta à trágica história do jovem Bruno, que se torna, ao mesmo tempo, vítima e agente de horrores difíceis de imaginar, espalhando pânico pela cidade de Rio Preto.
A seguir, temos dois contos que colocam o município no primeiríssimo plano: “Os despertos”, de Lucas Pelegrino, e, fechando a coletânea, “A fome da capivara”, de Lucas Oliveira. No primeiro, acompanhamos a história de um jovem e ambicioso rio-pretense que, após construir um currículo invejável na capital paulista, volta à cidade para assumir um cargo em uma misteriosa multinacional. Aos poucos, ele se vê enredado em uma trama que envolve política, ocultismo e, por fim, eventos bizarros. Narrada em primeira pessoa, a história dialoga com o horror cósmico de H.P. Lovecraft à medida que o protagonista percebe sua insignificância diante de práticas antiquíssimas. No conto, a cidade ainda assume um importante papel, por ser o palco de confrontos entre tradição e progresso, ancestralidade e futuro, tão recorrentes no interior paulista.
Por fim, “A fome da capivara” propõe um horror de natureza essencialmente humana: aquele causado por assassinos em série. No entanto, Lucas Oliveira associa seu sinistro antagonista a um animal de características diametralmente opostas às de um psicopata: a dócil e pacata capivara, símbolo de São José do Rio Preto. Essa inversão é um dos triunfos do conto, que consegue atribuir características realmente assustadoras ao roedor. Outra qualidade é a construção do espaço na narrativa: de estrutura arrojada, cheia de cortes cinematográficos, a história nos apresenta a uma cidade vívida e verdadeira, sobretudo em relação aos seus espaços abandonados — tão abandonados quanto as vítimas daquilo que espreita o local.
Assim, cada autor, à sua própria maneira, responde àquela dúvida a respeito de possíveis horrores em uma região que raras vezes comparece a obras do gênero. Como se essas respostas não bastassem, cabe lembrar que o principal nome de nossa literatura macabra (e também pulp) nasceu, vive e continua trabalhando no interior de São Paulo, não muito longe de Rio Preto: trata-se de Rubens Francisco Lucchetti, autor de centenas de livros e roteiros.
Por fim, deixo meu convite para você conhecer essas e outras histórias que já estão por aí. Não apenas pelo prazer que resulta da leitura de uma boa narrativa de horror; mas porque acredito que elas possam, enfim, colocar o interior paulista no mapa de nossa literatura sinistra. Para quem sabe dele não mais sair.
_______________________
Oscar Nestarez é pesquisador e escritor da ficção literária de horror. No campo da pesquisa acadêmica, possui Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e atualmente cursa Doutorado pela USP, tendo como objeto de estudos centrais a obra de Edgar Allan Poe. Como ficcionista, publicou Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura (ed. Livrus, 2013), as antologias Sexorcista e outros relatos insólitos (ed. Livrus, 2014) e Horror adentro (ed. Kazuá, 2016), e o romance Bile negra (ed. Empíreo, 2017), além de contos em diversas coletâneas. É também colunista da Revista Galileu, em que aborda temas da ficção de horror.