O desejo é uma armadilha ardilosa. Pode ser feroz e também fugaz. Pulsa intensíssimo reafirmando a iminência da morte, essa força implacável. Em “De quando estive em Alto-Mar: Poemas de afogamentos e algumas mortes felizes”, Renata de Castro navega e convida-nos a navegar pelas águas caudalosas, potentes e, por vezes, intempestivas do desejo.
Seus poemas percorrem o corpo tal qual mergulham no mar: “ao sabor da maré/Fluindo em ondas/Vaza pelas bordas a transbordar”. Nesse ritmo descompassado, feito marulho, o movimento dos versos faz recordar a fusão dos corpos, espécie de celebração diante do fascínio manifestado pelo desejo da carne.
Sob a metáfora de Hera, o desejo se espraia fecundo e faminto, revelando a si e ao outro, como já demonstra em seus primeiros versos: “um cio não é só//é o anúncio//– do outro”. Assim, se as pulsões evidenciam também a sede dos pares, é no que pulsa do corpo efêmero que a condição do desejo se revela, úmida e fatal, conforme arremata em um de seus poemas: “pelo afogamento temo/mas sigo/ mato-me ou vivo?”.
Nessa profundeza salina, “De quando estive em Alto-Mar: Poemas de afogamentos e algumas mortes felizes” nos apresenta o desejo inescapável, aquele capaz de solapar a suposta estabilidade dos interditos para dar vazão aos possíveis e inesgotáveis canais secretos de nós mesmos, capazes de avultar percepções, desordenar e reordenar códigos internos. Com efeito, Renata de Castro prenuncia o risco: “perigoso é o desejo/que como água/alimenta a si mesmo/evapora e chove/encharca e escorre”.
A intensidade desses poemas se dá mesmo nessa experiência entre escolha arguta das palavras, provocando cadência entre versos e corpos, e a imersão no “mar bravio” do desejo, proporcionando uma ressaca de transbordamentos. Portanto, o que nos resta, leitores, é singrar pelas “águas revoltosas” da poesia de Renata de Castro, certos de que “nenhuma fuga seca é possível”.
Orelha escrita por Ana Rita de C. Souza
*
Ao sabor da maré
sobe a maré
quase ilhada,
já sei:
nenhuma fuga seca
é possível
nenhum esboço de caminho
a cada passo
mais pesados
meus pés marcados
pelo afogamento temo,
mas sigo
Mato-me ou vivo?
Nome
Gosto da fome
com que me come
E do desespero
com que me devora
E como no meu corpo
goza
do meu corpo
goza
com meu corpo
goza
Gosto da sua boca sôfrega
Perdida na minha
língua trôpega
Numa dança descompassada
Não diga que estou errada
que em sua direção
meu passo é curto
Se dou dois para trás
é porque já todos
meus sentidos consome
Vê:
meu surto
tem seu nome
Quero que da tua boca escorra
A efêmera poção
Que se espalha pela carne
E a vivifica em uma dose
Que passa com a posse
Do que foi desejado
Não quero que da tua boca escorra
O adocicado veneno
Que se espalha
pelas veias e pensamentos
E, autorizado,
mata lentamente
Mas da tua boca escorre
Saliva doce que inebria
Versos encantatórios
Evidente armadilha armada.
Da minha boca,
quase fechada,
escorre espessa
A recusa baça.
Vem me nascer
na carne do dia
transborda-me águas
água tudo que há
Traz teu cheiro de sal
Traz tua voz em ondas
Traz tua pele solar
Vem me romper
a saudade na melodia
que repete teu nome
teu nome
teu nome
por todo corpo do Mar
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Nota editorial: A campanha de financiamento coletivo para o lançamento do livro De quando estive em alto-mar (Editora Escaleras) estará disponível no site CATARSE até o dia 12 de março de 2021.
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Renata de Castro é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.