O COPO AMERICANO – THAIS LANCMAN

Coluna | A Resenhista


Às vezes esqueço que podemos comprar de tudo, ou quase tudo. Por isso, durante muito tempo acreditei que era preciso ir a um bar para beber cerveja em copo americano. Quando mudei de casa, uma das minhas primeiras decisões é que os copos seriam todos da linha Americano, ou seja, variações do modelo consagrado pela Nadir Figueiredo (o uso do feminino aqui refere-se à marca, pois, como fui descobrir depois, nunca houve uma Dona Nadir, e sim um senhor com este nome, e ele faleceu há algum tempo).

A vantagem de ser um copo barato era outro fator relevante para uma desastrada como eu. Mas, fui pega de surpresa com sua resistência. Talvez aí esteja a americanice a que o Sr. Nadir se referia, pois desde que os comprei são conflitos semelhantes à sequência de guerras americanas. Band of brothers é aquilo que mora no meu armário da cozinha, e desembarcam na Normandia sob ataques constantes da gata, caem nos pântanos vietnamitas molhados da pia escorregadia, rolam pelo tapete como se fosse o Afeganistão e sobrevivem. Soldados da minha sede.

Entre o gosto pelo copo americano, o qual está longe de ser uma exclusividade minha, e as compras na Rua Paula Souza para compor a minha nova casa, os copos surrados de bar – inclusive eu vi uma vez um abrir ao meio feito o Mar Vermelho diante do cajado de Moisés quando a cerveja jorrou sobre o vidro, sem deixar uma lasca sequer, um desses pequenos mistérios da vida, insignificantes e insolúveis –, viraram uma linha infinita de produtos, e eu tenho boa parte dela aqui, inclusive exemplares do original, ganhados de brinde em algum evento irrelevante.

Gosto principalmente da versão aumentada do copo americano tradicional, de 450 ml, e um baixinho, porém mais largo, de 300 ml. Em dias bagunçados, eles se espalham pela minha sala (que também é escritório). Nadir Figueiredo não é mais coisa de bar, de boteco, mas de casa, água, mate, drinks improvisados. Até vinho. Tenho taças, mas existe um sabor especial em beber vinho em copos.

É fato que o único motivo de elogio que normalmente concedem ao copo americano é o fato de emanar a atmosfera de um boteco de esquina. Pouco se fala de como, olhando através deles, a realidade é fatiada como se fosse uma persiana caleidoscópica.

Espalhados na sala-escritório, de forma que não exista um móvel sem um copo usado, é como se eu estivesse dentro de um dos lustres da casa da minha avó, e olhasse para fora, um fora que não há, e que ao mesmo tempo deixa a realidade caótica também bonita. Em lascas, tudo fica para depois. Essa, sim, a maior qualidade do copo americano.

Eu confesso que tenho ressalvas quanto a potes de vidro que agora integram a linha. Tenho alguns. Mas existe algo de confuso a respeito de potes em formato de copo (e não adianta só dizer que é um modelo americano para qualquer item, pois se trata, queira ou não, de uma metonímia). Antes eu achava que é porque copos exigem uma limpeza especial e a ideia de algo tipo um copo que armazena alimentos é um pouco desagradável (o temaki em copo? Genial, mas nunca comi nem quero).

Acontece que estive pensando e, embora sempre acreditasse que nos copos estivesse um anseio maior por limpeza e purificação, em especial quando se trata de álcool (e eu já bebi uma certa vodka que também é utilizada como produto de limpeza), concluí que é justamente o contrário. A mistura numa bebida, em especial alcoólica, torna tudo mais palatável. A prova: descobri a existência de um drinque chamado Tuna Tears, um coquetel coreano que leva fluidos dos olhos do atum misturado a soju, e fiquei com vontade de provar. Se me oferecessem olhos de peixe como petisco, jamais aceitaria. O copo, então, é um espaço de experimentação e ousadia. Os potes e pratos são mais conservadores. Ou, no copo tudo se mistura então também nós ficamos mais valentes, enquanto no exibicionismo da comida servida, algumas verdades são difíceis de encarar.

Ter comprado copos americanos de tamanhos variados, no final, foi uma decisão acertada, porque eu pude, junto com a minha desorganização, transformar toda a minha casa em uma espécie de recipiente para que o mais desagradável se torne palatável, com os copos espalhados formando uma enorme unidade que me abarca. Vejo pedacinhos do corredor, da vista para o Minhocão, através do vidro do copo, trechos distorcidos em tiras, com novas formas, e me alegro com o meu descuido, única saída possível em tantas ocasiões. Fica tudo parecendo uma festa, o que combina com a música que toca para ninguém.

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Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá), além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutoranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer