TORRENTE – ADRIANO B. ESPÍNDOLA SANTOS

Pai dizia, “Atabalhoada!”. Sabe uma forte torrente, dessas que passam e arrastam árvores, com raiz e tudo? “Meu Deus!”, mãe derretia-se, aos prantos, tentando entender. “A quem essa menina puxou? Seu pai não era assim, sua mãe muito menos; todos seus avós foram pessoas de bem!”.

Falei, meio para me livrar do problema, que não queria mais me envolver. Ledo engano. Minha irmã bastava adentrar a casa, mesmo morando a quilômetros de distância, em outra cidade, e trazia com ela os raios lancinantes de uma vida perdulária; atrevida. E não precisava muito para notar. Sebastião estava em casa, num dia qualquer do ano passado; há tempos que também não aparecia aqui, e disse, em voz embargada: “Que essa menina tem que não toma jeito? Sua mãe vai morrer de desgosto!”. A voz, além de tudo, denotava o cansaço de um tio que não podia fazer nada para nos defender; já com setenta e tantos anos, não conseguia tomar pé da situação, quanto menos suportar um peso maior que seus ombros afundados na desolação.

Germinava em mim uma ira irreconhecível. Não conseguia ignorar ou passar ileso, diante de tanta temeridade – ou atrocidade – sobre nós. A leitora pode se questionar: “Mas que coisas horrendas são estas que a moça pratica?”. Digo que um familiar chegou a indagar-me também – ares de desdém –, supondo que seria exagero de alguém superpovoado por indefinições. Digo-lhe, com bastante sinceridade: minha sensibilidade é aguda, no sentido de reconhecer o mais fino perturbar, inda mais dirigido à minha mãe. A moça, sim, tinha a manha de saber se sair em quaisquer situações, não havia embaraço ou constrangimento – pura desfaçatez. Era benquista no meio social, com aquela cara armada, enquanto eu, antissocial, podia muito bem ser questionado por minhas conjeturadas paranoias. Eis o ponto.

Fingia demência. Minha irmã não me dava a menor importância. A minha mãe, enchia-lhe de responsabilidades inócuas: “Velha suja, arruma esse quarto! Velha caduca, lave-se que está fedendo! Parece uma caipora! Velha bruta, não sabe comer sem derramar um grão! Parece uma galinha manca!”. Aquilo foi me tomando, tomando, regular e progressivamente, que não atinava mais nada, a não ser me livrar daquele entulho.

Infelizmente – ou felizmente, dado o desgosto –, dois meses depois dessa última visita, minha mãe morreu. Momento perfeito para completar o plano há muito adormecido.

Era tido como um cachorro baldio, desterrado. Propriamente desterrado, porque vivia fingindo-me incauto, nos fundos da casa, numa casinhola aos pedaços. Ela ia e vinha, buscando um comprador; apresentando o imóvel seu, só seu, como dizia. Que um sujeito morava nos fundos, mas, prontamente, fechado o negócio, seria posto para fora. Que não se preocupasse, porque o dito cujo era cria de sua mãe, para os afazeres domésticos, e que, pela idade, já não tinha serventia; dia mais, dia menos, iria para um asilo ou algo do tipo. Que estava em processo de interdição.

Boom! Abriu-se o chão. “Que essa megera pensa que sou?!” – esse foi o pensamento que me botou para frente.

No derradeiro dia, já bastante inquieto com as sucessões que se avizinhavam, pus-me, na frente da casa, como a cuidar do jardim. Não era exatamente um jardim, mas tinha plantas da época de minha mãe. Enquanto as ajeitava, ela passou como um furacão, arreliando-se de minha presença. Puxou uma escada e colocou mais uma placa: vendida. Não entendi. Não tinha tempo para questionamentos, algo mais interessante estava prestes a acontecer… Ouvi o grito. Caiu na primeira armadilha, um vaso arrebentou em sua cabeça, ao entrar na cozinha.

Ruiu sobre cacos de vidros, grandes e pontiagudos. Gemeu, gritou por socorro. Como a casa era em território ermo, não se espalhava nada; nem o menor assombro. Vociferava meu nome, como a chamar um cachorro. Deixei-a sofrer. Calculado o local da queda, a machadinha haveria de decepar um dos pés em minutos. Pronto. Mais alvoroço. Já se debatia como peixe, sem sair do lugar. Deixei-a sofrer mais. Não me acudiam os ânimos, e corri para vê-la parir a dor, que me aliviava. Frédéric Chopin, ao fundo, me deliciava mais. Embebi-me do cheiro de sangue, degustando vinho tinto, como vida para mim. Agonizava porque, além do mais, um dos fios de náilon pressionava sua garganta, na medida certa para, ainda, respirar.

Morreu horas depois. Sofreu menos que nós. Não sou tão ruim assim. A sua sorte foi ter se livrado da justiçagem de meu pai; esse, sim, atroz, de picotar sujeito mal-ouvido, quando estritamente necessário para angariar a paz.

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Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance Flor no caos, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, Contículos de dores refratárias e O ano em que tudo começou, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.