ANESTESIA – JOÃO PAULO PARISIO

Através da janela do escritório, olhou para o casario colorido e encardido do bairro de São José, aquela coisa tão colonial-latina, entremeado pelas copas das árvores que pareciam os cabelos de criaturas de Maurice Sendak brincando de esconde-esconde. Mais além o horizonte anguloso, dominado pelos edifícios apenas encardidos. Às vezes, olhando esse cenário ao crepúsculo, sentia-se um personagem das pinturas de Caspar David Friedrich, embora ele nada tivesse em comum com as paisagens do pintor romântico. Isso vinha da intuição de que um cenário urbano era tão natural quanto as montanhas e os bosques, e que ao erguer e espraiar cidades o homem estava apenas obedecendo à natureza, da mesma forma que abelhas, formigas, cupins, castores, joões-de-barro… Se tinha consciência disso, era porque essa possibilidade de autoconhecimento estava contida na mesma natureza. Seu sentimento decorria também da capacidade de perceber a força do mundo, seu maravilhoso, mesmo no ocaso de uma decadente cidade sul-americana, uma cidade acometida de mal de Alzheimer que esquece com furor a pujança perdida.

O crepúsculo ainda estava longe. A cidade reverberava ao sol, emitia notas agudíssimas acima do espectro auditivo do homem, mas que, fundidas numa só, faziam os morcegos se remexerem em seus esconderijos nas igrejas esconsas, nos depósitos dos cais abandonados e nos sobrados ruinosos, rangendo os dentes, franzindo as pálpebras, passando a língua nos beiços, roçando-se uns nos outros. Há um edifício na rua Barão da Vitória, comercial no térreo e residencial nos demais andares, que parece a catedral de Gaudí prensada num compactador. Com um daqueles véus verdes de construção já rasgado e esgarçado, graças a uma reforma interrompida no ano anterior, sugeriu ao funcionário uma noiva que se recusasse a tirar o vestido mesmo depois de dias, meses, anos da fuga de seu noivo. Por trás desse edifício que o dragão apareceu. Surgira, portanto, logo acima da antiga estação ferroviária central, que tem gárgulas aquilino-draconianas no alto dos torreões… Gárgulas que tinham sido pintadas de dourado, mas não enganavam ninguém: todos sabem que são muito velhas e escuras de tempo. Contou as gárgulas visíveis de seu ponto de vista. Naquele setor do edifício, não estava faltando nenhuma. As mesmas três de sempre. Quase respirou aliviado. Seria de extremo mau gosto que uma delas tivesse ganhado vida e engigantecido. Era um dragão antigo. Um dragão cor de locomotiva sem pintura. Os dragões, é fato notório, são como os crocodilos: quanto mais velhos mais poderosos, potentes, possantes, pacientes e irascíveis. Embora aquele também estivesse indubitavelmente magro, talvez depois de hibernar por séculos, milênios de descrença. Bateu as asas com inaudita leveza e olhou ao redor com sua venerável cabeça. Tinha começado: o estado de sítio da Realidade, esta fortaleza.

O funcionário acompanhou seu voo tranquilo e gracioso, seu quase voo de garça do Capibaribe, até que despareceu ou pela moldura da janela, ou por trás de arranha-céus. Mas era possível ouvir o som de suas asas, o ar deslocado por elas. Lembrava um grande guarda-chuva sendo aberto e recolhido sucessivamente. Ressurgiu depois de ter feito uma ampla curva, e pousou a uns 20 metros de sua janela, num teto cimentado um pouco abaixo do nível de seu olhar, em meio a caixas-d’água azuis-celestes e telhados repletos de exaustores eólicos que, girando no mesmo sentido e apenas com sutis diferenças de velocidade entre uns e outros, davam a impressão de uma paisagem de contos de fadas ou d’O Mágico de Oz, um jardim de prateadas flores giratórias, cupulares e herméticas. Emitiam reflexos ao sol, que por sua vez se esbatiam no dragão sem tornar a refletir-se. Suas escamas opacas, porosas, bebiam a luz. Deviam estar recobertas pelo pó e detritos do lugar de onde viera. Talvez o Xeol, ou algum outro inferno primitivo. Talvez aquele dragão fosse a alma de algum general terrível da Idade Antiga, daquela dinastia persa. Artaxerxes era um bom nome para um dragão. Estirou-se ali, imobilizou-se. Os pombos chegaram a pousar-lhe e a cagar-lhe em cima, até flerte e safadeza fizeram, pardais se banquetearam de parasitas em suas rugas e fissuras, nos intervalos entre as placas. Como o bom réptil que era, tomava banho de sol para aquecer o sangue, tornava-se uma gárgula de si.

O funcionário voltou a debruçar-se sobre a petição que tentava redigir, uma petição difícil de que o chefe imediato o incumbira. Sentiu um arrepio e deu-se conta de que não provinha inteiramente da expectativa quanto ao sucesso da redação daquela peça. Voltou-se para a janela e viu que as pálpebras, ou melhor, a pálpebra direita (a única que podia ver) do dragão se havia aberto. A pupila fendida, muito estreitinha à tanta luz, estava voltada para ele, e teve que reconhecer: conforme as lendas, o olhar de um dragão era além de mortífero, aliciador. Teve medo de entender o que o olhar do dragão dizia, mas não conseguia afastar os olhos. Sentiu que o lodo do fundo de sua alma estava todo se revolvendo e logo viria à tona se ele não afastasse o olhar do dragão, mas ele não afastava. Entendeu que o maior perigo dos dragões era esse olhar, não a ígnea baforada, a garra quase metálica ou a rasteira da cauda. Mas não afastou os olhos. O que revolvia o lodo, claro, era uma tempestade da alma inteira, como se uma lua alienígena tivesse de repente se aproximado e atraído o mar com sua gravidade, causando alvoroço nas águas. Como esperado, ouviu a voz do dragão na sua cabeça, falando em sua língua imemorial, que algo imemorial nele entendia. Se pudesse olhar ao redor, veria que todos trabalhavam, ou não trabalhavam, normalmente, no trivial escritório de advocacia. Alguém até olhava pela janela da copa enquanto tomava um cafezinho, sem sobressalto. O dragão lhe fez uma proposta, uma proposta e uma promessa. Ele recusou, e o dragão riu. Como ri um dragão? Não com a boca. Com um estreitamento das pálpebras e a consequente intensificação do olhar, cujo raio se concentra. Se lhe prometesse dinheiro, notoriedade, poder, nada disso o tentaria. Mas o dragão lhe prometia nunca mais sofrer. Sabia que era supérfluo recusar.

§

Conheceu-a numa segunda de carnaval à noite, no RecBeat, à beira do Capibaribe, em frente ao Paço Alfândega, em meio à brisa. Pelo rápido olhar, percebeu a reciprocidade, abordou-a. Ela estava de vestido e com alguma tiara com ares de grinalda. O fato foi que lhe lembrou pinturas como a Alegoria da primavera. Seus olhos morosos tinham uma qualidade penetrante, que o desconcertava. Conversa vai, conversa vem, perguntou-lhe o que fazia. Ela propôs um jogo, uma charada.

— Eu boto as pessoas pra dormirem.

— Anestesista — disse ele após refletir por dois segundos.

A conversa fluiu, beijaram-se. Era um show de Céu, e quando ela cantou Malemolência a moça deu a entender que a música caía bem ao momento, que combinava com ele. Aquela coisa de menino bonito, ai, aiaiai, ai, aiaiaia, de não pude evitar, tirou meu ar, fiquei sem chão… Deixou-a no táxi às 3 da manhã. Não, não, não, não treparam, isso não é uma sugestiva elipse. Caminhou para o cais de Santa Rita em estado de graça, suportou o ônibus abarrotado como fosse uma barca para o paraíso. Depois do carnaval, marcaram de ver Amor, de Haneke, no cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Odiaram tanto o filme que saíram antes. Ele suava frio e reclamava do ar-condicionado que não funcionava bem, não sabia, mas estava apaixonado depois de 10 anos, quando já se perguntara em que Medusa seu coração colocara os olhos, em que Medusa seus olhos tinham colocado os dedos, embora soubesse-lhe bem o nome da colega da faculdade, que fora parar onde? No Canadá, claro. Sentaram no Café Castigliani. Ele sabia que se pedisse um expresso ia tremer, ainda mais porque as asas daquelas xicrinhas, em nome de alguma noção de sofisticação, tinham buracos pequenos demais para se ter uma boa pegada. O horror dos nervosos. E seria ainda mais vexaminoso tremer diante de uma mulher pequenina que sequer estremecia antes de enfiar uma agulha do tamanho de um dedo entre as vértebras de uma pessoa indefesa. Sentiu-se um pouco ridículo ao sugar o canudo do milk-shake, e mais ainda quando ela o fez perceber que, devido à inclinação do copo, estava derramando.

Ela disse que o levaria em casa, e depois de um cabo de guerra de escusa e generosidade, dirigiram-se a seu Fiat Cinquecento vermelho, que dava a impressão de um rechonchudo filhote de carro. Não havia como se furtar a um sentimento de afeição instantânea pelo bichinho. Ela o estacionara na rua das Creoulas, com suas calçadas quebradas pelas raízes das grandes árvores soturnas, praticamente intransitáveis em mais de um ponto. Do retrovisor central pendia um poliedro de papel com uma ilustração de Escher, ou uma ilustração de Escher dobrada de modo a conformar um poliedro, justamente um daqueles desenhos na modalidade ladrilhamento de planos. À vista do poliedro, ele pensou em dizer que gostava de RPG, porque no seu jogo favorito, Advanced Dungeons & Dragons, usavam-se dados na forma de todos os poliedros de Platão, mas ela falou antes.

— Eu gosto de trabalhos manuais.

Ele olhou para suas pequenas mãos, uma no volante, outra alternando-se entre a marcha e os gestos. Estava apaixonado. Sentiu um rapto de irrealidade. O coração, a Medusa. Conversar era um esforço, as palavras saíam a fórceps, e tinham que soar naturais, mas ele sabia de antemão que não soariam, sabia que estava botando a perder o que queria justamente por ter começado a querer: o amor. E não soavam.

§

Ela morava na Madalena, num apartamento pequeno e aconchegante. Ofereceu-lhe vinho. À meia-luz, pegou o livro com as ilustrações destacáveis de Escher, mostrou como funcionava, deixou que ele tentasse montar um poliedro, suas mãos roçaram. Havia algo de tocante na pequenez das mãos dela. Baco incorporou, as genitálias floresceram, as bocas plantas carnívoras. Dormiram como trepadeiras recíprocas. Quando ele acordou, não conseguiu falar, não conseguiu mover senão os olhos. O coração, a Medusa, o coração a Medusa o coração. Sua cabeça estava suspensa como a de uma pessoa a quem se vai dar água deitada. Ela estava sentada numa cadeira diante dele, de cabeça baixa, os cabelos ocultando parte do rosto, mas dava para ver a boca melada de chocolate, ao lado um pote de Nutella. Usava luvas hospitalares, e tentava fechar um novo poliedro de papel com ilustrações de Escher. Sobre a bancada, perto do notebook, havia uma injeção usada, a agulha grossa como a dos fura-dedo de sua infância, e uma serra circular, suja de um pó branco. Sentiu um cheiro de queimado. Seguiu-o. Seu peito estava aberto, as costelas serradas seguras por agarradeiras de metal polido, especular. Seu coração fora substituído por um pomo de ferro. Com as partes ligadas por membranas flexíveis de material sintético, talvez veludoso, se expandia e retraía com suavidade, e tinha alguma coisa de esfera armilar, seu novo coração cor de locomotiva sem pintura. Erguendo os olhos com delicada surpresa, ela falou:

— Deixei aberto até você acordar pra não haver nenhuma dúvida. Agora vou fechar — ela sorriu e as pálpebras se semicerraram, restando de cada olho apenas uma fenda visível.

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João Paulo Parisio 
(Instagram / Site) é autor de Retrocausalidade, Homens e outros animais fabulosos, Esculturas fluidas e Legião anônima.