ME DÊ UM TIRO, MAS NÃO ME VENHA COM POEMAS DE AMOR – ROMULO NARDUCCI

O Chão já nos conhece
Por Lili Balonecker

Me dê um tiro, mas não me venha com poemas de amor” chega até nós como um visgo na carne, poesia que irrompe à flor da pele, desnudando os contingentes da alma, do desejo e da dor. Cada página antecipa um soluço guardado, acende no peito uma chama de delírio, prazer e desencanto. Cada verso ecoa pela garganta uma ardência rascante de uma etílica tristeza que sorri com o canto da boca. Cada poema poderia ser também uma fotografia, um filme, um quadro, uma história, um desatino, uma canção. Evocam imagens líricas, referências e inferências ao amor, cravados num peito que sangra, que jaz morto como a esperança, mas que não raras vezes se permite desafiar as leis da gravidade. Alguns poemas batem em mim como um soco na boca do estômago, um vômito quente na face, um cuspe cáustico. E é justamente essa arte que nos tira do lugar de conforto, da inércia mórbida, que mais nos ensina sobre o amor. A dor e a vulnerabilidade nos trazem a consciência da nossa humanidade e nos aproximam uns dos outros. Escrevemos nossos versos enquanto golfamos distopia numa calçada solitária, sem encontrar a sarjeta onde recostar a cabeça para regurgitar nossas angústias.

Romulo Narducci, poeta maldito e escarnecedor de um mundo de dores e desencantos, artista louco, apaixonado, artesão de nuas e cruas palavras, em suas construções imagéticas e simbólicas, evoca mulheres amadas. O poeta gosta do cheiro de flores, mas prefere o caos. Ele prefere as bruxas às santas. Apaga incêndios onde deveria deixar arder até as cinzas. Ele também arde e, em suas noites insones, beberica sua solidão, pois não sabe o quanto mais andará a esmo em busca de algo que faça sentido. Ele ouve tiros na esquina, mas já nem liga. Entre vísceras e sonhos, goza a sua (a nossa) solidão. Todas as mulheres aqui presentes são dele, são minhas, são nossas, somos nós. Um olhar que, entre os inúmeros versos, acendem/transcendem muitas histórias: as nossas histórias.

Então, mate o medo encurralado no canto da parede e mergulhe neste livro. Tudo pode esperar, afinal, já não se fazem mais dores como antigamente e sempre há um camundongo debaixo de um velho sofá encardido a nos espreitar. A solidão não nos atemoriza. Você está só e eu também. Nós não tememos a queda, pois sabemos que o chão já nos conhece.

Boa leitura!

*

Cospe em Mim

Para V.B.

Enfia a língua
na minha boca
e roce-a nas palavras
de baixo-calão.

Cospe em mim.
Comece uma guerra civil
nas ruas da sua solidão.

Coquetel de molotov
, caipirinha, gin
e chuva dourada.

Mate o medo encurralado
no canto da parede
com o seu cinismo
e beba comigo
da miséria idílica
insensata.

Anjo sem harpa
, rei sem trono
, amante sem amante
, não há vedanta que salve
a verdade que está
no lixo.

Cospe em mim.

Mas cospe com vontade.

Cospe, por favor, vai…

Leis da gravidade

Para Ana Farrah

Ela vende pack de fotos nuas
para tarados solitários
, eu vendo a minha alma ao acaso.

Ela flerta com o perigo
, cospe nas mocinhas
que se dizem de bom costume
social, senta sem modos
de saia e sem calcinha
no parque, bebe e arrota
na cara do padre
e desafia o monstro da lagoa
, eu engulo a minha ansiedade
como um ovo de pato
instalado no fundo
da minha garganta.

Ela fuma e bebe
pra caralho e mesmo
assim, mantém a sua
beleza angelical
, eu bebo pra caralho
e bêbado caminho
quilômetros a pé
para a minha casa
desafiando o perigo
na madrugada
entre anjos e demônios.

Ela é do sul
e eu do sudeste.

Ela diz que me ama
sem nunca ter me visto
, e tantas que me veem sempre
e não me amam…

Ela sorri pra mim
quando tem vontade
de chorar
, eu choro o seu choro
sorrindo com suas piadas
malvadas mais
do que necessárias.

Poderíamos ser
Bonnie e Clyde
, Louis e Lestat
, Mickey Knox e Mallory Knox
, Papai Noel e Mamãe Noel
, Exu e Pomba-gira
, o 6 e o 9
e a inversão dos valores
numa teia social
onde a conjuntura
moral já não cabe mais.

Um dia quem sabe
nos encontramos
e desafiamos as leis
da gravidade?


O lugar de onde veio

Para William Burroughs



Saído do quinto dos infernos
, bebeu água
empoçada na sarjeta
, fumou guimbas abandonadas
pelos bêbados
nas calçadas
dos botequins imundos
, saudou mendigos
como se fossem reis
, dormiu
com cães sarnentos
para se aquecer
do frio
, masturbou-se e ejaculou
lama e sangue
em praça pública
debaixo de estátuas
de militares
e comeu nas trevas
a própria escuridão
e o que achou de si.

Quando amanheceu
o dia
, ao ver passar um anjo
, apaixonou-se
e
morreu
de
amores.

Então, voltou
para o lugar de
onde veio

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
Nota editorial: Me dê um tiro, mas não me venha com poemas de amor foi lançado em janeiro de 2021, pela editora Patuá, e pode ser adquirido aqui.

_______________________
Romulo Narducci nasceu em Niterói em 1975 e foi criado em São Gonçalo, RJ. É advogado, poeta, escritor, compositor, integrante da banda Flores de Plástico, DJ e agitador cultural. É um dos idealizadores do tradicional evento Uma Noite na Taverna, surgido em São Gonçalo, RJ, em 2004. Já idealizou e participou de diversos eventos e saraus de poesia e música. Publicou os livros de poesia Orações Licenciosas (independente, 2008), Tudo que Morre é Consumado (independente, 2010), Cantigas de Ninar Monstros (Editora Conexão 7, 2019) e Me dê um Tiro, mas não me venha com poemas de Amor (Editora Patuá, 2021); e o livro de contos Angustiolândia (Ou de Bares, Ruas e Bordéis) (Editora All Print, 2014); além de ter participado de diversas coletâneas de poesias e contos, com destaque para as publicações FLUP Pensa – 43 Novos Autores (2012, editora Aeroplano), Conta Forte Conta Alto – Contos Inspirados nas canções de Martinho da Vila (2018, FLUP e FUNARTE) e Contos para Depois do Ódio contos inspirados nas canções de Marcelo Yuka (2020, FLUP e Editora Mórula).