O CONTINUUM DA CRIAÇÃO – ANITA DEAK

Coluna | Litterae


 

É possível que o leitor não perceba, mas os grandes livros têm uma característica em comum: a sustentação de um movimento contínuo. Pode ser o desenrolar da psique do personagem principal, caso, por exemplo, de Raskólnikov, em Crime e Castigo. Nesta obra de arte, a psique do protagonista sofre modulações a cada página; camadas e camadas vão sendo gradativamente expostas por Dostoiévski numa dança que nos dá a sensação de que o personagem vive enquanto avançamos na leitura.

O itálico na última frase não é à toa. Muitos dos meus alunos e autores iniciantes decidem quem são seus personagens e pensam que basta adjetivá-los, dizer que Juliana, por exemplo, é uma mulher triste, e só isto bastará para que o leitor tenha acesso à tristeza e se enterneça. Repare que, se o autor estabelece na frase que um personagem é triste, a tristeza não é colocada como um movimento. Ela é posta de maneira acabada e rígida. Como fica o leitor? Passivo. Ele é obrigado a aceitar a tristeza imposta por um autor à la Deus – e pior – da maneira mais óbvia e literal.

Evidentemente, existe certa dose de entrega do estado do personagem em inúmeras obras-primas, inclusive em Crime e Castigo. Entregas bem pontuadas, aliás, trazem respiro para a leitura e são fundamentais como pontos de parada entre um movimento mais profundo de construção de personagem e outro. Autoras magistrais como Agustina Bessa-Luís e Clarice Lispector são mestres em entregar o estado dos personagens com refinamento.

Bessa-Luís, em A Sibila, constrói camadas dentro das entregas que faz. Lispector, por sua vez, em Perto do coração selvagem, entrega pensamentos e estados da personagem, mas estes pensamentos e estados são tão interessantes e surpreendentes que muitas vezes viram pontos de inflexão dentro do livro. Talvez porque Clarice, ao entregar um estado, não tenha se contentado – assim como Agustina – a pontuá-lo apenas uma vez. Ambas sustentam os estados dos personagens depois que os entregam. Aquilo que, num primeiro momento, é colocado de maneira acabada, passa a percorrer o texto.

Seja na sustentação posterior de uma entrega, seja na construção da tristeza de uma personagem não pelo adjetivo triste – mas ao longo das páginas, com cenas em que podemos por nós mesmos inferir esta tristeza –, o que há em comum é o movimento. A tristeza deve acontecer em diferentes cenas, em diferentes pontos do livro, deve alargar-se e comprimir-se de forma que o leitor a sentirá. É o leitor quem deve sentir o que personagem sente. A entrega como único método de construção de personagem tira a possibilidade do leitor de sentir a tristeza em movimento, enquanto ela acontece em cena.  

O movimento é essencial não apenas na construção de personagens. O narrador, o tempo, o espaço, todos os elementos da narrativa existem em relação, de maneira que para cada elemento deverá ser construído um movimento e a própria integração entre eles resultará numa dança contínua. Já vi muitos textos mortos por não apresentarem este continuum.   

O sopro da vida, na Literatura, é menos romântico que a filosofia implícita em A criação de Adão, de Michelangelo, que você vê na imagem de abertura deste texto. Não basta um toque em apenas um elemento para que um livro ganhe vida. É uma série de toques, ou seja, uma série de escolhas, na matéria-prima da palavra.

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Anita Deak é escritora e editora de livros. Nasceu em Belo Horizonte. Seu romance de estreia, Mate-me quando quiser (2014), foi finalista do Prêmio SESC de Literatura e teve os direitos vendidos para o cinema. Lançou, em 2020, o romance No fundo do oceano, os animais invisíveis. Dá dicas e fala sobre literatura nos stories e destaques do Instagram