#NOVE – GRAZIELA BRUM

Coluna | Campo de Heliantos


Há duas pessoas no escritor. Na verdade, são milhares de pessoas, mas ao avaliar pelo menos duas, suas semelhanças e diferenças, já se pode encontrar respostas para textos que travam, ou escritas de difícil acesso depois de um tempo engavetadas. A pessoa número 1 toma conta do que o escritor sabe de si e de seus desejos conscientes. A outra pessoa, número 2, traz as sombras e coloca o escritor diante às obscuridades insondáveis do mundo. Não é possível escrever apenas com uma pessoa. Todo escritor precisa mobilizar no mínimo duas pessoas para elaborar o texto.

A pessoa número 1 carrega a luz da consciência e caminha contra a imensidão nebulosa de possibilidades, e a parte do escritor que trabalha na lógica. Graças à pessoa número 1 temos os livros clássicos e todos os livros até aqui publicados, pois é ela que organiza, une as ideias numa premissa e viabiliza a sequência narrativa do livro.

Agora, importante mencionar, que livro matemático teríamos se o escritor renegasse a pessoa número 2, por medo de adentrar na zona desconhecida de si mesma ou na complexa organização do universo. Cabe ao escritor a coragem para percorrer por caminhos até então incompressível, que mesmo na ilógica perceptiva do mundo traz à tona elementos intrigantes e que colocam a prova o caminho do texto.

Quantos vezes durante o fluxo criativo em escrita, em meio a uma cena ou na construção da poesia, surgem elementos desconexos à linha narrativa. O escritor é, antes de mais nada, um ser corajoso por evocar o subconsciente, trazer peças sem encaixe e desorganizar uma estrutura que, até então, encontrava-se sob seu domínio. Mas que domínio um escritor pode ter de sua história se não ousa descolar do foco central por receio de perdê-la? É preciso dizer, se a história for mesmo consistente, bem estruturada, andar por caminhos adjacentes desconhecidos e, por vezes, sem nenhuma ralação com o texto, pode ser um excelente exercício para a criatividade.

O absurdo é morada para a singularidade, mas não o absurdo superficial, surgido do nada, mas o absurdo gerado na sequência ousada de entendimentos até o ponto de ultrapassar o limite da lógica e entrar num fluxo de consciência despregado das conclusões. 

O que a gente entende é muito menor do resto incompreensível. A luz da consciência é uma bola de gude que está na mão da pessoa 1. A esfera de gude encontra-se dentro de um círculo de diâmetro incalculável com toda a substância material e imaterial dentro desse espaço ou não espaço desconhecido. A pessoa número 2 flutua nessa região. O escritor 1 tem a habilidade de lançar uma linha de dentro da sua esfera de consciência em direção ao escritor 2 voador. Por essa linha podemos acessar esse lugar do desconhecido. O fato é, se a pessoa 1 não souber manejar a linha e conduzir a pessoa 2 nesse espaço, os absurdos que aparecem nunca se conectarão com a história ou pelo menos não serão tão instigantes e originais. Saber pilotar a pessoa 2 pela grande esfera é uma das capacidades do escritor.

Agora, como chegar nesse lugar e adquirir a habilidade de se lançar pelo desconhecido sem medo? Mais do que isso, como trabalhar o desconhecido que nos chega em favor da nossa história. Aqui é preciso desenrolar a captação da pessoa 2 e a recepção da pessoa 1.

Veja bem, adianta a pessoa 2 entrar pelos caminhos mais íngremes e obscuros, colher toda uma gama de material, de substâncias, se a pessoa 1 está bloqueada? Então, a pessoa 1 precisa desenvolver sua receptividade. Se desenvolve a receptividade treinando e obtendo repertório. Com a receptividade aflorada, a pessoa 1 é capaz de receber com mais tranquilidade a matéria incompreensível e avaliá-la com mais discernimento.  Ou seja, a pessoa 1 deve afinar seus receptores para o absurdo. Já a pessoa 2, precisa de segurança para não ter medo de avançar nos caminhos da escuridão, do vasto espaço incompreendido, pois é ali que captará o material incomum mais rico para levar a pessoa 1, capaz de polir e encaixar no lugar certo.

Enfim, o trabalho de escrita não pertence a um único campo, muito menos a uma única pessoa. Ele é rico e demanda treinamento intenso de no mínimo duas pessoas, as quais devem confiar uma na outra para entrar num fluxo de criatividade na produção de textos singulares.

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Graziela Brum
 idealizou e coordena o Projeto Literário Senhoras Obscenas. Vencedora de dois concursos ProAc em São Paulo, com Fumaça (2014) e Jenipará (2019) – que é o primeiro romance de uma trilogia sobre a Amazônia -, também publicou Vejo Girassóis em Você (Lumme), de prosa poética.