Coluna | A Resenhista
Atravessar a rua na faixa serve apenas para ganhar a discussão. Caso você seja atropelado, estar sobre ela é a certeza que todos estarão do seu lado. O que significa que a faixa de pedestres é um mecanismo apenas meio eficiente para garantir um pouco de civilidade na cadeia alimentar do tráfego.
O pedestre tem uma vantagem sobre outro fragilizado urbano, o ciclista, que é o fato de todo mundo ser um pouco pedestre, mesmo aqueles que parecem alérgicos a asfalto, quando se estaciona do lado oposto ao banco ou à farmácia, por exemplo. Então é preciso cruzar longos metros prometendo a si mesmo que vai chegar vivo na outra calçada. É o momento de usar a faixa.
A minha principal crítica à faixa de pedestres é sua diferença em relação às lombadas. Talvez a pequena elevação desse um pouco de dignidade ao pedestre. Penso nisso por dois motivos: o primeiro é sua fragilidade. Não é curioso que a Internet se divirta tanto com vídeos de gatos que sentados dentro de um quadrado de fita crepe colada no chão quando nós, diariamente, fazemos o mesmo para atravessar a rua? A elevação igualaria a faixa à calçada, faria com que ganhássemos alguma moral. Com nós mesmos, claro, o que é suficiente.
Segundo, porque motoristas odeiam lombadas (basta ver que em alguns lugares elas são chamadas de quebra-molas, o que mostra também nosso carrocentrismo). Passageiros também. Seria um pequeno passo em lembrar a todos que carros usurpam as ruas toda vez que deixam a garagem. Basta pensar no valor do metro quadrado em uma cidade qualquer e pensar que carros são um espaço considerável tomado sempre como privado, mesmo que se tratando de uma área móvel. Desnecessário dizer também que os semáforos de pedestres parecem pedir a eles que corram, dizendo “não temos o dia todo para a sua bobagem de querer andar por aí”, enquanto o seu equivalente voltado aos motoristas pede gentilmente que os humanos logo em frente não sejam aniquilados, um pouquinho de paciência, eu imploro.
Mas essa não é uma resenha de semáforos – e nem de placas de trânsito, embora eu precise delas para mostrar onde quero chegar. Esses dias acompanhei a discussão a respeito da sinalização em alimentos industrializados e a proposta de que fossem similares a placas de trânsito, aquelas de alerta, indicando se o produto tem alto teor de sódio, gorduras, açúcares. O sistema, já em uso no Chile, parece ser eficiente. O meu senso prático aí caiu por terra, porque eu simplesmente não consigo aceitar que as placas de trânsito, aquelas que, veja bem, são voltadas aos condutores, invadam a nossa vida em todos os aspectos. Como se não fôssemos nada além de apêndices de veículos espaçosos, poluidores e pouco eficientes do ponto de vista energético.
Podemos dizer que a faixa de pedestres é razoavelmente eficaz, mas poderia ser bem mais com a sugestão que dei aqui. Espero um dia dizer que ela foi um paliativo mediano, quando a humanidade perceber que carros são meio cafonas. Podemos dizer que, enquanto feito de uma linguagem minimalista, ela é um arraso. Enquanto fenômeno político, péssima. Essa dicotomia faz dela um bom acontecimento artístico, então, considerando que arte boa é sempre ruim enquanto discurso político e vice-versa. Talvez aí esteja meu apreço por ela.
Assim eu penso a respeito da faixa de pedestres. Em dias bons, considero um feito da humanidade termos criado um código mundial do local em que se atravessa (nem sempre listrado, eu sei, às vezes é só demarcado com duas faixas horizontais) e isso me desperta algum afeto por ela, amante das invenções que sou. Em dias ruins, a maioria deles, toda vez que atravesso a rua sinto-me vítima de uma grande injustiça, confinada como a minha gata no chão demarcado de fita crepe. Nada disso, porém, supera a constatação que abriu esta resenha: se um dia eu for atropelada sobre a faixa de pedestres, todos irão dizer que estou certa e o motorista está errado. Então essas opiniões complexas têm uma condicional: cairão por terra se eu for atropelada. Aprovarei a faixa de pedestres de maneira irrestrita, não porque ela me protegeu, mas porque ela me garantiu a razão.
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Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá), além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutoranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer.