luz esmaecida da manhã
o devaneio belisca a alma
sorriso ainda dormindo
pele arrepiada
na ponta dos dedos
sons
de quando somos calados
sol no espelho
e o agora abre fenda na memória
o lençol empurra o corpo
tudo ainda é sutil e quente
acordei naquela manhã
com a sensação súbita
de estar no lugar errado
a cama empurrava minha pele
entrei no chuveiro quente
querendo limpar a inconveniência sem nome
a água era um relógio regressivo
um ruído cutucava a minha alma
eu agia lentamente entre o ar que pesava
era ainda tão cedo
e você já havia mentido duas vezes
tempo e café
quanto café eu precisava para acreditar?
café, tempo
quanto tempo aquele café podia durar?
me juntei e desci as escadas
andei lado a lado com o peso
e me deixei beijar pelo seu silêncio
estava no lugar errado
há tanto tempo, no lugar errado
nunca mais voltei
mas esperei, por algum tempo,
algo ser dito
algo desdizer que eu estava no lugar errado
há tanto tempo, no lugar errado
a neblina árida sussurra na tarde
e embala
o mosaico desses silêncios
a janela range, raspando,
quase no peito
é o quinto dia e consegui, enfim, falar
covardia em bomba sem bipe
voz rasurada
rolando lenta
numa bolinha amassada de papel
tarde, noite
noite na tarde
um sopro
uma intermitência no grito sóbrio do vento
o instante que rompe
essa nebulosa enrolada no fundo dos olhos
a lembrança
que faz chover nas linhas do tempo
é quinta e faz noite, pude então chorar
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Ângela Coradini (Site) é poeta e roteirista audiovisual, em Cuiabá-MT. É autora dos livros de poesia Já Não Podem Ser Amanhã (Carlini Caniato, 2020) e Quatro Nós (ainda no prelo), e Imagens-Espectro de Futuridades no Amplo Presente (Edufmt, 2020). Tem doutorado em Cultura Contemporânea, pela UFMT, e é editora na revista eletrônica Ruído Manifesto.