O ._. – THAIS LANCMAN

Coluna | A Resenhista


 

Pode acontecer a qualquer momento. Uma tomada é apenas uma tomada e, de repente, dois olhos, uma boquinha. Acontece no fogão, em um bueiro na rua, na aleatoriedade do lixo ao redor de um poste.

É difícil esmiuçar o que acontece. Nosso olhar é atraído para aquele conjunto de formas e é como se víssemos um rosto familiar. A familiaridade do qualquer-rosto.

Não há a menor possibilidade de o rosto encontrado por acidente causar uma sensação ruim. Há algo parecido com o alívio, talvez seja o conforto de encontrar um resquício de humanidade. Mas, como diria Sérgio Sant’anna, não, não é bem isso. Vemos um pouco de nós mesmos ali, o mínimo possível.

O mínimo é o que permite ser uma figura afável, porque a carinha minimalista, por assim dizer, parece na verdade mais com um desenho animado do que com nós mesmos. Não é a mesma reação que temos com feições humanas identificadas em um pedaço de madeira ou na estampa de um tapete, geralmente mais inquietantes. Ou, quem sabe, são inquietantes porque costumam ser mais animalescas do que cartunescas. Eu costumava chamá-las de demônios, diametralmente opostas às “carinhas”.

Acho incrível que conseguimos olhar o mundo à nossa volta atribuindo a qualidade da fofura a praticamente qualquer coisa. E transfigurar aleatoriamente elementos esparsos em algo que aqui digo me desperta exclusivamente sensações agradáveis.

De uma maneira muito profunda, esses rostinhos me tiram de uma solidão que eu não me dava conta que existia. Ao mesmo tempo, fazem com que eu a enxergue. Não é a solitude, essa aprecio desde antes de conhecer a palavra. É a constatação de uma parte de si nunca estar ao alcance do outro. Talvez a parte que importe. O único que a vê é o par de olhos da tomada, dos três ímãs de geladeira posicionados em triângulo, dos puxadores do gabinete no banheiro. São eles que miram de maneira inofensiva os confins interiores que nem mesmo eu sei o que existe ali.

Tudo o que eu sei é que eles estão espantados com as descobertas. E eu, encantada com a fofurice, e por isso distraída para qualquer investigação mais aprofundada. Quanto mais rostinhos se vê por aí, mais exploramos uma ignorância que só pode ser chamada de paz de espírito. Não há como se indispor quando um deles nos dá oi.

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Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá), além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutoranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer