Coluna | A Resenhista
Existe uma cena emblemática do cotidiano feminino: de joelhos, a cara próxima ao chão, procurando a pecinha de metal minúscula que garante que os brincos fiquem presos às orelhas. Geralmente, isso acontece em duas ocasiões: você já está arrumada, e os brincos eram os detalhes finais de um processo elaborado de combinação de roupas, sapatos e bolsa, ou então você está em plena desmontagem, o que significa que está cansada e talvez um pouco bêbada, mas precisa encontrar a bendita tarraxa pois ela fará falta em algum momento, pode ser pisada e machucar, ou engolida pelo seu gato.
Por que as tarraxas pulam das mãos ou até mesmo dos brincos é um mistério, e talvez seja o que faça dessas miudezas algo fascinante. Elas são mais incríveis quando não funcionam. Afinal, como é que pode algo com uma função tão simples – é só ficar lá e não se mexer – fazer a única coisa entre infinitas ações possíveis que fazem da operação “usar brincos” um fracasso? De repente, você está sem um dos brincos. Com sorte, ou com o hábito de usar brincos pesados, você percebe que ele caiu. Pode recuperá-lo, mas dificilmente a tarraxa será resgatada. Quando eu era mais nova, substituía tarraxas perdidas por pedaços da borracha que levava no estojo. Funcionavam bem, pois não deslizavam pela haste do brinco.
Tenho diferentes tipos de tarraxas: aquelas mais tradicionais, com duas asinhas, parecendo óculos, umas de pinos, um pouco parecidas com um Dantop (de metal e de plástico), aquelas com um disco de plástico em volta. Sei que existem outros tipos, uma marca de brincos que sigo no Instagram explicou em um post que existem tarraxas em formato de gota, e parecem de fato muito boas. Também tenho um brinco (um só, não um par) que sobe a orelha, e fica preso no alto por um fecho de pressão. Dói demais, o que me leva a concluir que a tarraxa é infinitamente melhor.
Havia uma lojinha perto de casa que por um tempo exibia um cartaz na entrada: temos tarrachas (grafado errado mesmo, como eu achei que era antes de começar a escrever esta resenha). Foi a única vez que vi algo do tipo. Embora não tivesse comprado, e eventualmente o comércio até mudou de dono, achei a ideia muito boa. Porque nunca compramos tarraxas, apenas brincos. Apesar disso, sem elas, os brincos são inúteis.
Quando reuni essas observações sobre a tarraxa, consegui associá-la a um perfil muito específico de pessoa. Indispensável e sagaz, nunca protagonista, exceto quando é um estorvo. O tipo de irritação provocado pela tarraxa que some na caixa de joias ou no chão é muito similar ao que já senti em diversas ocasiões sociais. É um feito, conseguir extrair de nós tantos sentimentos.
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Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá), além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutoranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer.