Coluna | A Resenhista
É difícil aceitar que momentos tão insignificantes ficam marcados nos objetos e nos móveis, e assim fincam pé na nossa memória.
O box do meu chuveiro, por exemplo, está riscado porque um dia qualquer eu decidi limpá-lo com palha de aço e não tive paciência para esperar o vidro secar. Quando vi, os riscos já estavam lá. Passei meses com os olhos fixos no estrago enquanto tomava banho, agora já nem olho. Mas lembro daquele dia, do podcast que ouvia durante a faxina, do filme que assisti depois, exausta e um pouco chateada comigo mesma.
A bancada da cozinha tem a marca de faca do dia em que cortei um pão achando que conseguiria controlar os movimentos de forma a parar o corte antes de chegar à fórmica, o que, claro, não deu certo. Ao contrário da faxina, nesse caso não lembro muito do pão ou da faca que usava. Percebi depois a cicatriz na superfície esbranquiçada, ao lado das bolhas deixadas pelo vazamento perene do filtro de barro que já não mora mais ali. As formas arredondadas que estufaram o compensado de madeira são fruto do acúmulo, de uma negligência recorrente e, portanto, da segurança de que nada aconteceria se eu não prestasse atenção.
Um terceiro tipo de marca é a pontual, mas cujo momento exato me escapa. A capa do meu Kindle tem os furinhos dos dentes de uma gata que já morreu. Consigo lembrar alguns momentos em que ela atacou a capa, mas nenhum específico. Sei que ali estão os registros da mordida dela, consigo ver a estampa de corações enfiada na sua boca, mas não sei dizer se estávamos na mesa, no sofá, na cama. Observando agora, há muito mais marcas do que tinha me dado conta, e nenhum detalhe a mais de como foram feitas.
Assim, as marcas espalhadas pela casa parecem categorizar os embates diários daquilo que queremos lembrar e o que efetivamente lembramos. Se existe um limite para o que armazenamos, não gostaria de desperdiçar espaço com uma faxina qualquer. Preferia lembrar com essa exatidão tantos momentos que passei com a Shprintze, cada um deles, quando fui descobrindo suas mordidas e sua ânsia por atenção. Gostaria de saber o que estava lendo no meu Kindle enquanto ela se deliciava com a capa, que repousava.
Sobre as marcas de faca e do filtro, que são como o tapete queimado e tantos outros pequenos acidentes domésticos da pessoa afobada, eles me forçam a pensar em quanto não olhamos, em tudo o que se perde, diferente da gata, sem que eu sequer tenha cogitado sua importância. Quem sabe o que se esconde nessas cicatrizes que se espalham pela casa, que serão como os “vestígios de estranha civilização” de que Chico Buarque falou. Sem palavras, esses episódios de significação indefinida são os verdadeiros fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos, nenhum deles de minha autoria, todos eles produzidos por mim.
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Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá), além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutoranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer.