Este livro de estreia em poesia de Fábio Pessanha é um baú de tesouros. São poemas porosos, impregnados de um silêncio que espreita o leitor. Um silêncio que a todo momento diz: carpe diem. Aproveite o dia – e também o poema e cada estrofe porque, a qualquer momento, o romantismo pode se desmanchar no ar. Ou se impregnar de ruídos. E deixar no leitor “a sensação seca de uma/ paisagem no meio do/ peito”.
E não é o que acontece com o romantismo hoje? Fábio Pessanha soube captar essa volatilidade com uma linguagem elegante, que se recusa a grandes arroubos. Como quando o eu-lírico diz “deitar na malha puída/ do seu ventre e beber todos/ os vícios. quero poder/ deixar as mãos onde meu/ corpo falha e devorar/ o brusco peso das chuvas”.
Aliás, é pela via da sutileza que o autor traz à tona o macabro que nos habita. É o caso de passagens como: “a vontade é de engolir borboletas/ despetalar suas asas com a boca e/ sentir o gosto leve do seu voo/ no estômago”.
Assim, verso a verso, poema a poema, constrói-se um universo em que os afetos e estados de humor são cambiantes, sujeitos a mudanças inadvertidas; e onde contraditórios convivem sem julgamentos morais para balizar a leitura. Cada leitor que traga a sua própria chave.
Aproxime o ouvido desse livro. Ouça a vibração de seus versos, perceba a energia e aposta na vida (e em suas contradições). Como bem resume o poema de abertura: “é sempre/ a morte na praia do nado. mas/ fazer o quê? viver é essa microfonia/ que cega das/ frases a voz, e a gente sempre/ se repete para as ânsias do mundo.”
Texto de orelha escrito por
Diego Rebouças
Roteirista e escritor
Conheça 3 poemas do livro:
são muitas as variações para se dizer
a mesma coisa.
a casa, o pasto, a glória, o físico
compasso em que dois corpos deram adeus
ao mesmo espaço. isso nunca me aconteceu
antes, a voz
diz toda plácida seus próprios
estômagos, mesmo sem saber dos
nudes enviados em segredo para o
sagrado enredo
das profanações. muito já
se disse e sempre se repetem os fatos,
ainda que não caiba mais ninguém na ironia
dos passos. não
mais adianta correr, é sempre
a morte na praia do nado. mas
fazer o quê? viver é essa microfonia
que cega das
frases a voz, e a gente sempre
se repete para as ânsias do mundo.
***
sem laços que segurem
essa vontade tão sem
limites. tão sem amarras
que fizessem caber
num instante apenas, então
diria mais do que
minha boca aguenta. ainda
faria um céu onde os
pés pudessem sentir o
rosto da lua
e até choveria para
o lado de dentro do
medo. fertilizaria
horrores, inclusive
os mais diários, sem ter
que recusar os contornos
brutos do corpo, quando
largado num jeito estranho
de ocupar fronteiras entre
figuras imaginárias
e esse naco de pescoço
que não para de suar
saltaria sobre o
seu desejo de inventar
desejos e largaria
todas as lâmpadas mágicas
com gênios engarrafados
***
para sophia de mello breyner andresen
(escrito a partir do poema “O minotauro”)
digo com a solenidade mítica da escuta:
“pertenço à raça daqueles que
mergulham de olhos abertos
e reconhecem o abismo pedra a pedra
anémona a anémona flor a flor”
sob a voz possante do que me leva
ao interdito do que penso ser quem sou.
transito pelo labirinto de creta
à espera do minotauro e desejo tecer
com o “fio de linho da palavra” toda
a desordem das coisas. ouço atenta
e causticamente o solfejo presente
em tudo que ainda não se disse
e recolho o poema que habita
o silêncio do mundo porque o poema
já está feito, sempre esteve pronto
no desejo alquímico que transforma
a onipresença etérea da poesia
na saliva espessa de quem bebe
a palavra e com ela se consubstancia
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NOTA EDITORIAL: O livro está em pré-venda no site da Editora Patuá até 14/06.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa e na própria Vício Velho.