O ESPIRRO – THAIS LANCMAN

Coluna | A Resenhista


Eu sou uma pessoa sofisticada o bastante para achar espirros engraçados. Não que eles me façam gargalhar, mas alguma risadinha eu sempre esboço diante de alguém que espirra, principalmente se eu for eu mesma. Isso é bom, em partes, porque quando a rinite alérgica ataca por um lado, o bom humor chega, por outro.

Não acho que se trate de humor escatológico, e sim o fator surpresa, base da comédia, aliás. É como um punchline universal: o som do espirro muitas vezes surpreende em seu tom, volume, duração. Espirros são engraçados quando são muito altos, quando seu autor – o espirrador? – tentou segurar.

Não à toa Atchim & Espirro formaram uma dupla de palhaços consagrada.

Nem sempre minha relação com os espirros foi totalmente positiva. Quando eu comecei a dirigir, por exemplo, tinha pavor de bater o carro caso espirrasse com as mãos no volante. Achando que, ao espirrar, pisaria bruscamente no freio ou no acelerador, ou fizesse um movimento com os braços que me levasse a ir contra um muro ou um carro na pista ao lado.

Passei por muitos congestionamentos e dois carros velhos sem nenhuma colisão causada por alergia. O que me faz pensar que nosso corpo não está tão interligado como imaginamos, ou pelo menos da forma que pensamos. Principalmente em relação àquilo que é involuntário, e, dado seu caráter imprevisível, achamos que irá nos controlar tendendo ao infinito e com um final trágico. Pense em Ninguém tem culpa, do Cortázar, aquela mão que fica fora de si – fora de quem? – ao atravessar a manga do pulôver. Ela poderia ter um surto semelhante ao espirro, algo pontual e estridente, e depois voltar à sua submissão quase irrestrita.

Penso, então, em quantas vezes nos forçamos a ver relações entre as coisas, leituras somáticas dos nossos atos quando na verdade tudo é movido pela aleatoriedade. O quanto falamos em independência e liberdade quando tudo o que queremos, pela ânsia de prever até o grau de imprevisibilidade, é um encadeamento. O quanto não aceitamos, nas histórias que lemos e escrevemos, que as coisas sejam “do nada”, e só partimos para esse recurso, como apelação, quando uma narrativa nos vence pelo cansaço.

Também cogito na frustração da brevidade do espirro. O fato de, talvez, nos lembrarmos de um ou outro. Mas todos os espirros se embaralham na memória. Toda aquela potência, humorística inclusive, se dissipa em menos de um segundo. Uma história sem graça. A anedota que poderia ter sido e que não foi. Menor ainda que o tropeço, cuja vergonha é sempre maior, que a tosse, geralmente persistente e capaz de gerar mal entendido.

Talvez, nada explique o espirro tão bem quanto aquela vontade de espirrar que nunca se concretiza e permanece como uma coceira inacessível dentro do nariz. Que, de repente, acaba.

_______________________
Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá), além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutoranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer