UM GRANDE QUARTO DE DESPEJO: BRASIL – ADRIANO B. ESPÍNDOLA SANTOS

Coluna | Anseios Crípticos


 

Na última semana, dirigindo a lata do meu privilégio, percorrendo a parte esquecida da cidade, vi a imagem avassaladora de uma família carregando um grande cesto e um acúmulo de materiais recicláveis. Quem guiava era uma mãe, muito combalida, cansada, sem tempo para perder as forças; duas crianças, uma deitada no entulho ambulante e outra caminhando ao lado da mãe. Uma cachorra seguia serelepe suportando as vicissitudes, apontando para o futuro, como a Baleia de Vidas Secas.

No ato, um frio travou a minha espinha; não podia dirigir. Quedei um momento pensando na quantidade de famílias desamparadas, depois da pandemia, entregues à sorte de um porvir qualquer; a maioria sem CPF, sem documento e sem endereço para arrecadar o mínimo de auxílio – que já não existe ou é uma quimera baldada. Ou seja, um exercício torturante pela luta de viver em comunhão.  

Não é admissível esquecer, por um segundo sequer, uma série de fatores que empurra o Brasil ao porão da desumanização: Bolsonaro – descaso – Bolsonaro – fascismo – Bolsonaro – desigualdade – Bolsonaro – pandemia – Bolsonaro.

Sim, é anacrônico ter de afirmar o óbvio. Estamos, como nunca estivemos, encerrados a um dos piores cenários de desastre humanitário. Chegamos e ultrapassamos, há pouco, o incrível patamar de quinhentos mil brasileiros mortos pela Covid, num país alugado e vendido a preço de banana – com o preço de vidas – ao neoliberalismo.

Em compensação, felizmente, pessoas conscientes avocam a responsabilidade para si. Todos nós, de alguma forma, estamos envolvidos na composição do bem-estar comum. Se lembrarmos aqui de Leonardo Boff, quando fala do modo-de-ser do cuidado, sujeito-sujeito, tem-se a vida como sinônimo de coletividade; e viver corresponde à alteridade, ou seja, eu sou porque o outro é:

“Este ser-no-mundo na forma do cuidado faz o homem e a mulher viverem a experiência fundamental daquilo que tem importância e definitivamente conta, em uma palavra, o valor. Não o valor utilitarista (só para o meu uso), mas o valor das coisas em si mesmas, oculto e revelado em sua natureza que irradia e se conecta com tudo e com todos. A partir do valor inerente às coisas, emerge a dimensão de alteridade, reciprocidade e complementariedade” (BOFF, on-line).

Partindo dessas premissas, façamos um giro para o Brasil de 1955 a 1959, por exemplo; o Brasil de Carolina Maria de Jesus – um ser que habita a pele da agente ambiental que relatei acima. Uma mulher negra saída de Sacramento, em Minas Gerais, em busca de perspectivas – a realidade de muitos brasileiros: o êxodo – na megacidade de São Paulo, foi parar nos despojos da urbe, na grande favela de Canindé, estando aí grávida, sem amparo; desempregada. A alternativa foi viver com a sorte de ter algum dinheiro, escasso, para a mantença de sua família, como catadora de material reciclável.

Lá, Carolina Maria de Jesus se deparou com a população que, igualmente, estava castigada ao degredo, à exclusão, à invisibilidade. Ela, portanto, era reificada com mais um objeto descartável no quarto de despejo, nos fundos escancarados do Brasil.

Nos intervalos das penosas caminhadas, ela seguia o sonho de escrever o seu diário, detalhando as atribulações padecidas na favela; de ver um dia o livro de suas memórias publicado por uma editora. Desta forma é descrita no site da Universidade Federal de Minas Gerais, da Faculdade de Letras, em Literafro:

“Leitora voraz de livros e de tudo o que lhe caía nas mãos, logo tomou o hábito de escrever. E assim iniciou sua trajetória de memorialista passando a registrar o cotidiano do ‘quarto de despejo’ da capital nos cadernos que recolhia do lixo e que se transformariam mais tarde nos ‘diários de uma favelada’”.

Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada – é resultado de sua persistência e de sua crença em revelar para o universo a trajetória de uma negra favelada sobrevivendo nos escombros de um país ausente. O toque certeiro da realidade apaixonou o universo literário, virou sucesso, sendo, assim, distribuído em quarenta países e traduzido em dezesseis línguas, como revela a Revista Galileu1.

O doloroso passeio pelas vielas intrincadas de Quarto de Despejo – Diário de uma favelada – delata a grossura da vida, que não difere muito dos dias atuais. A resistência à perversidade, com um coração altivo, justifica a grandeza de se fazer fênix, todos os dias, do nascer ao pôr do sol.

No diário, nota-se o vai-e-vem de uma mulher sobrecarregada, pendente de destino e de amanhã. Ao acordar, várias vezes reclamava da pobreza, da falta de ânimo e de esperança brincante, aprofundadas quando tinha de pegar água numa fonte pública, onde era abafada pelas lamentações de tantes. Noutras, Carolina Maria de Jesus reluzia e acreditava – sonhava, na verdade – em se tornar uma escritora reconhecida pelo seu valor, e isso a fazia escrever e escrever, passando para o papel as delicadezas de quem, ainda, podia se nutrir de fantasias.

Ela erguia o seu mundo e o distinguia da lama, literalmente: espantava as línguas ferinas que queriam atacar os seus filhos; protegia-os das garras da fatalidade; agradava-os com a melhor alimentação possível ou com um par de sapatos rejuvenescido por suas mãos, dado à filha Vera Eunice.

A dor se alastrava, sistêmica, septicêmica, como na narrativa do aperreio da mãe por não arranjar meios para comprar o pão ou a mistura para oferecer aos filhos, que refletiam a gastura dos corpos, como passarinhos no ninho clamando por comida. Quantas mães, ainda, são repetidas em Carolina Maria de Jesus? Quantas mães, hoje, minguam pela carestia?

Havia dias em que Carolina Maria de Jesus e seus filhos iam dormir atormentados pelas chuvas ou pelo frio. Detalhava como era difícil livrar-se das águas que avançavam e detonavam, com o seu curso inocente e natural, as suas parcas mobílias, os bens que a muito custo conseguira.

Mesmo diante das situações mais degradantes, ela imaginava e se perdia em esperas pacientes, soterrando, temporariamente, as aflições – este é o método que não se pode cobrar ou perder para os enganadores de sempre.

Carolina Maria de Jesus, ligada à alegoria de uma presumida paz, confiava numa ou noutra promessa de que seus escritos seriam publicados, para que, assim, expusesse a crueldade a que era submetida; a que a população carente, como ela, era subjugada.

O fado é que o Brasil continua adensando a desigualdade e a injustiça social. Não bastaram mais de trezentos anos de escravidão, a distorção imensa quanto às castas inventadas, pois que amargamos um confuso cenário de ruína, de onde não se vê uma réstia de saída.

Nesses tempos, ousa-se questionar – e há quem defenda a primeira das alternativas! – sobre o que mais importa, a economia ou a vida. É lógico que continuam sendo os poucos e grandes bilionários a fomentar a miséria e a esconder o capital – como se o único ensejo de existir seja mesmo para abastecer a lascívia monetária dos falidos mortais. E este é o ponto sensível do dilema brasileiro: os poderosos falam em línguas sagradas e incompreensíveis, mostrando-se a favor dos pobres, quando, na verdade, nada se importam com a condição dos marginais. Ou seja, se tiverem de viver, que seja por uma circunstância aleatória do acaso! A intenção propalada nas sombras da morte sempre foi o efeito rebanho; que se salve quem tem o dom da natureza da adaptação – como se Darwin estivesse de acordo com esses engodos…

Carolina Maria de Jesus não deixou de existir em entre nós; é uma alma que protesta, perene. Ela está gritando em suas páginas por dignidade, para poder persistir no embate, para dizer que a vida não é um objeto nem um falido projeto. A miserável lacuna de existir no Brasil concorre para o adorável brilho nos olhos de Carolina Maria de Jesus.   

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Adriano B. Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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Referências:

BOFF, Leonardo. O cuidado essencial: princípio de um novoethos. Disponível aqui. Acesso em: 21.06.21.

CANZIAN, Fernando. Folha de São Paulo. Brasil começa 2021 com mais miseráveis que há uma década. Disponível aqui. Acesso em: 21.06.21.

“Carolina Maria de Jesus é referência para quem contesta o poder”. Disponível aqui. Acesso em: 15.06.21.

Carolina Maria de Jesus. Disponível aqui. Acesso em: 15.06.21.

Carolina Maria de Jesus. Disponível aqui. Acesso em: 15.06.21.

CARRANÇA, Thais. BBC News, Brasil. Auxílio emergencial: Com benefício reduzido em 2021, Brasil terá 61 milhões na pobreza. Disponível aqui. Acesso em: 21.06.21.

FUKS, Rebeca. Livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Disponível aqui. Acesso em: 23.06.21.

MARASCIULO, Marilia. Quem foi Carolina Maria de Jesus, que completaria 105 anos em março. Disponível aqui. Acesso em: 15.06.21.

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