A OSTRA – THAIS LANCMAN

Coluna | A Resenhista


 

A primeira memória que eu tenho de ostras é um episódio de Punky, a levada da breca em que ela vai a um jantar chique. Ostras são servidas, ela pega uma com nojo e, quando está tomando coragem para experimentar, acaba derrubando dentro de sua blusa aquela massinha molenga e gelada.

Assisti a tantas vezes esse episódio que já tinha para mim a sensação desagradável da consistência da ostra e, consequentemente, do sabor. Eu nunca me vi como a Punky, ao mesmo tempo que introjetei essa memória. Passei anos tendo essa cena como a minha maior referência, e quanto mais demorava para experimentar ostras, mais absorvia o asco da Punky como se fosse o meu.

Até que um dia, virei a chave completamente e decidi que queria comer ostras. E acho que decidi que iria gostar antes de jogar uma na minha boca.

– É como comer mar, ouvi. Concordei, e vi isso como algo positivo.

Não tem como ser ruim a oportunidade de comer o mar. Se o mar é bom de ver, de sentir o cheiro, de ouvir, por que comê-lo seria ruim?

E comer diferentes mares, dependendo de onde se está ao receber aquele prato de conchas e geleca perolada. De lá para cá, foram muitos mares, ostras de diferentes tamanhos, algumas temperadas, e a inesquecível ostra grelhada no Japão. No último fim de semana, sentir o mar descendo pela garganta em plena Barra Funda foi a salvação que não sabia que precisava.

Um dia, comprei um saco de ostras em um mercado coreano, e não foi tão bom quanto eu esperava. Na verdade, descobri algo sobre as ostras. Que a concha é tão ou mais importante que o conteúdo. Parte de comer o mar é aproximar aquela rigidez calcária dos lábios. Ou é o falso mistério da concha que se perde em um saco transparente, e aquilo que é escancarado demais não nos interessa.

Gostaria muito de metaforizar a ostra, mas aí vejo que a melhor qualidade é que nada do que disse gostar da ostra, ou melhor, do ato de comer ostras, é que não é uma metáfora de nada. É uma experiência em si. Os chocolates que a pequena suja da tabacaria de Fernando Pessoa come com uma verdade invejável, essa é a minha ostra. Não ousaria dizer que é uma madeleine, mas uma anti-madeleine, que me manda para um futuro, mas não qualquer futuro, um que nunca vai existir. Ou me manda para fora do tempo, para a verdade ontológica do mar.

Talvez seja muita responsabilidade a algo que é capturado no mar e servido muitas vezes sem firula alguma. Talvez seja justamente por isso. E por estar ali fechada, exigindo uma faca específica para ser manuseada, é que ela resiste às metáforas e aos tempos.

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Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá), além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutoranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer

(Imagem Maryna Kovalchuk)