#DOZE – GRAZIELA BRUM

Coluna | Campo de Heliantos


Evito mulheres machistas e invejosas, justo por não saber lidar com a dificuldade dos outros e também por causa do meu processo intenso de desconstrução de padrões culturais e familiares. Tomar contato com o conflito existencial do outro, ou melhor, o conflito preconceituoso, é desconfortável e me remete ao que já fui e não sou mais. Aliás. como ajudar uma mulher em 2021 a entender o significado a palavra sororidade? Penso que, os projetos literários, que valorizam a Literatura produzida por mulheres, são um caminho, mas ainda assim restrito a um grupo seleto e já questionador, sensível às mudanças e às vitórias feministas da nossa época.

Enfim, a real proposta que pensei abordar aqui é a relação de sentimentos desconfortáveis, digo, negativos, com nosso processo criativo. Em primeiro momento, imaginei que a culpa, a inveja, o medo pudessem de certa forma bloquear nosso poder de criação. Então, investiguei com amigos poetas e prosadores a minha teoria e percebi o evidente equívoco. Depois, inclusive, recordei de dois textos escritos por mim, em 2015 e 2019, com a intenção de me vingar de desafetos. Ou seja, o estímulo para escrever veio de sentimentos ruins.

O primeiro, escrevi na época que trabalhei numa multinacional como treinadora da América Latina de Radiologia. Uma colega irritante foi motivação para produzir um texto que contava a história de uma mulher preconceituosa morta no poço do elevador do edifício em que vivia com a família. A personagem tinha todas as características físicas e emocionais da colega. Confesso, que ao ler em voz alta no meu quarto o conto, eu era tomada de uma profunda satisfação quando a personagem escorregava no buraco de quinze andares e vinha a óbito. Aquilo foi libertador, porque todas as próximas vezes que a colega, na empresa, sentava ao meu lado, trazia aquele texto à mente e pensava se ela soubesse que já morreu na minha ficção.

Mais tarde, escrevi sobre um homem encontrado morto no Rio Tietê. Um assassinato. Publiquei o conto numa antologia e foi interessante como me senti vingada quando peguei o livro impresso nas mãos. Na noite de lançamento, autografei meu texto com orgulho.

Enfim, pensando no que já produzi e nas histórias dos meus amigos, entendi que o poder criativo não tem relação específica com o sentimento positivo ou negativo do artista, mas com a capacidade de transformar experiências boas ou ruins em arte. A habilidade do artista em conectar histórias e promover a interlocução entre o que reverbera na alma com o que vem construindo como obra. O substrato da produção encontra-se nas inquietudes, nos questionamentos, nas incertezas. Criar também é encontrar caminhos de sobrevivência as nossas frustrações.

Porém, é preciso dizer que há uma diferença entre sentimentos negativos e posições preconceituosas. É complicado trabalhar arte se o questionamento não for a mola propulsora do pensamento. São as perguntas que formam a base para a produção de arte e não os conceitos, as explicações ou as justificativas.  A arte nos remove do nosso tempo e nos coloca em suspensão entre os instantes. Lugar em que não se tem certeza de nada; no entanto, é um espaço possível para encontrar o ponto sensível da obra dentro de uma estrutura de múltiplas vozes ou perspectivas. Neste aspecto, o sentimento pode ser mudado em razão da arte, ou melhor, para a arte.

O sentimento pode ser o substrato para produção da narrativa. A obra criada por tal estímulo transforma o sentimento e ressignifica o entendimento da situação. A questão individual amplia-se e toma camadas mais profundas, podendo chegar em questões existenciais e nos temas principais da arte/literatura. São perguntas sempre fundamentais para todos que produzem arte: qual meu maior estímulo e como lidar de forma clara e profunda com nossa própria  temática?

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Graziela Brum
 idealizou e coordena o Projeto Literário Senhoras Obscenas. Vencedora de dois concursos ProAc em São Paulo, com Fumaça (2014) e Jenipará (2019) – que é o primeiro romance de uma trilogia sobre a Amazônia -, também publicou Vejo Girassóis em Você (Lumme), de prosa poética.