Tinha esse negócio dos pombos todos enlouquecerem ao som de Wagner às nove da manhã. Eles pousavam no telhado escuro do prédio ao lado, bem embaixo da janela do adolescente. Ficavam absortos, girando sobre si mesmos, com suas penas eletrizadas pelo ruído germânico da histeria, quase cruzando o peitoril quarto adentro.
Aquela manhã, porém, dispersara o ruflar de asa dos pombos. É que havia um moço reformando o telhado. Como um equilibrista, caminhava deixando marcas de bota na fuligem do telhado do prédio vizinho. Pediu para ligar a extensão numa das tomadas do quarto do adolescente. Ele ia usar alguma máquina específica que cortaria as telhas no tamanho certo, cobrindo os estragos causados por intempéries e pombos. Ao adolescente nada ou pouca coisa interessava. Na vida, no mundo etc. E reformas de telhado certamente não estariam no topo do seu rol de interesses. A cena matinal se desenrolava às suas costas. Entre espreguiçadas ocasionais, ele ia navegando em seu notebook. Por vezes abria um dos livros da pilha ao lado do computador e apoiava as pernas na mesa.
O adolescente sonolento ainda não havia penetrado nos começos do dia. Por começos de dia entende-se: afastar os vestígios do sono com água, tomar um café bem forte, comer algo sólido, fumar um cigarro, responder e-mails etc.
Não.
Ele ainda estava metido em sua calça quadriculada de pijama. O peito nu, privado de qualquer sinal de penugem. Um ranço de sono e suor pairando, feito corrente elétrica, espécie de aura indolente. Às suas costas, fina cortina mal ocultando um céu nublado, branquidão de doer nos olhos, silhueta do moço equilibrista, desenrolando o cabo da extensão que havia acabado de plugar. Extensão que era sempre esquecida em telhados e coberturas altíssimas, inalcançáveis, exclusivas. Às vezes só se dava conta na volta pra casa, em meio ao caos enlatado de um vagão da CPTM. Xingava em pensamento, pelos solavancos do trem e pela extensão deixada para trás. Por sorte ele não precisou entrar no quarto do adolescente, pois a tomada ficava logo ali, abaixo da madeira corroída da janela, bastando projetar o tronco para dentro.
Barulho de máquina cortante contra as buzinas de automóveis que brotavam do asfalto na Nove de Julho dez andares abaixo. Ruído mecânico contra cólera germânica de Wagner. Tudo se misturando, coando inquietações que vinham se juntar na testa do adolescente. Um vinco? Um olho de furacão, talvez, com sardas.
O moço da reforma parecia que tinha ligado a extensão em si próprio; movimentos ágeis, fluxos elétricos, como se pilhas e baterias distribuíssem energia por todos os chacras e encanamentos daquele corpo fibroso. O adolescente mal tinha arrumado a cara para dizer bom dia. Ele nunca dizia bom dia a ninguém. Achava que era melhor ser grosseiro-sincero do que hipócrita-refinado. O adolescente achava que podia derrubar e desconstruir todo um sistema de valores pétreos, criando códigos novos e profundos sobre o-ser-e-estar-aí-no-mundo, mas aquilo não passava de um triste retalho de leituras apressadas de tomos filosóficos, políticos, literários, somados à posts de engajamento de artistas e youtubers. O moço da reforma não se importava muito com adolescentes casca-grossa; só pensava em realizar seu trabalho sem ser impedido. A permissão do adolescente para que ele usasse a tomada era menos gentileza do que obrigação dos que moravam no último andar. A única coisa que o moço da reforma não suportava era gente dificultando sua jornada de trabalho de oito, por vezes dez horas ou mais.
Isso e esquecer a maldita extensão.
O fio agora estava completamente esticado. Ele não precisava ir tão longe, podia cortar as telhas junto à janela, mas preferiu não incomodar muito o adolescente com os ruídos de sua máquina. Percebeu que de dentro do quarto brotava uma música que lhe lembrava cena dramática de filme, ou o que ele também costumava chamar de “ópera”. Pra ele tudo o que tinha aquele som era “opera” porque ele era um moço que se ocupava em preencher as horas de lazer com outros experimentos culturais que não as variadas e complexas vertentes da música clássica.
O adolescente soltou um gemido ao passar a ponta da unha em uma espinha inflamada nas costas. Sempre lhe nasciam espinhas em lugares de difícil acesso. O estranho é que aquela dorzinha havia despertado um pouco o adolescente, que agora se sentia mais dentro da manhã, mais começando o dia, inclusive notando uma ereção tomando forma por baixo do pano quadriculado do pijama. Abriu uma aba anônima no navegador, pois circulava muito com seu notebook, seja pelas boates onde discotecava, pelos cafés onde costumava redigir seus trabalhos de faculdade ou pelos data-shows de sala de aula, onde plugava o notebook ao apresentar seminários. Era preciso tomar cuidado, mas nem tanto assim. Ao adolescente interessavam vídeos caseiros de masturbação. Nada daquela coisa de pornografia encenada. E foi o que ele buscou naquela manhã, aproveitando que estava livre do farfalhar dos pombos no peitoril da janela, apenas a silhueta do moço da reforma por trás da cortina branca. Vez ou outra, por conta dos puxões que ele dava no fio da extensão, a cortina se entreabria um pouco, mas logo voltava a se fechar.
Já fazia dois dias que o adolescente não abria abas anônimas e por isso seu peito liso recebeu uma carga exagerada de esperma. Ele se sentiu mais vazio e silencioso que uma catedral às três da tarde e desistiu da urgência de ter que limpar aquela bagunça toda. Na tela do notebook, o som amador do pornô caseiro ainda se misturava à Cavalgada das Valquírias, que por sua vez se perdia embaixo do trinado afiado da máquina do moço da reforma, barulho esse que sucumbia ao pano sujo sonoro da cidade. O adolescente relaxou os membros, fechou a aba anônima do navegador e cerrou os olhos respirando fundo. O líquido frio e pegajoso em sua barriga e peito já começava a escorrer pros lados.
Ele ia ter que levantar dali e fazer alguma coisa, nem que fosse pegar a peça de roupa mais próxima na trilha de roupas sujas que ele ia deixando pelo quarto. A poucos trancos de distância, havia uma camiseta surrada que ele transformara em regata a golpes de estilete. Costumava dormir com aquilo. A rodinha traseira da cadeira estava travada, talvez enganchada em algo, ele não conseguiu dar o tranco necessário só com a força do corpo. Atirou-se de volta, peito ofegante, costas magras contra o encosto quente da cadeira. A espinha doendo. A pilha de livros tombou em cima do notebook, as teclas digitaram ilegibilidades no trabalho de faculdade que estava aberto na barra de tarefas. Mais ou menos como se um gato tivesse passeado sua indiferença por ali. O adolescente ficou observando aquela não-frase, tão veloz quanto o seu orgasmo, um idioma desconhecido jorrado no corpo sisudo do trabalho, logo após uma citação de Lukács. A “tentativa verbal” de uma pilha de livros era sofrível. Ele soltou um guincho, menos riso e mais peido bucal. Ele gostava de debochar com aquele ruído. A Cavalgada das Valquírias chegava ao fim; logo um novo ruído sonoro explodiria nas caixinhas de som compradas na Santa Ifigênia. A do lado direito já estava começando a falhar e ele tinha que mexer nos fios toda vez. Talvez Tchaikovski fosse o próximo da fila, ou os noturnos de Chopin, tocados por Brigitte Engerer; aquilo sempre aparecia na lista aleatória, como se todo o panteão da música clássica fosse farinha de um mesmo saco erudito.
Mais ou menos como o moço da reforma, que achava que aquilo tudo era “ópera” e que botava naquele momento a cabeça encapacetada de amarelo pra dentro da janela e se deparava com o adolescente de peito nu e brilhante, se enxugando com uma camiseta velha de desenho japonês tão adolescente quanto o próprio garoto. O moço da reforma se lembrou da sua primeira vez, sim, acordar com a cueca envolta num líquido pegajoso, por vezes uma auréola fantasmagórica manchando o lençol. A vergonha. O medo. A mãe recolhendo a roupa de cama para lavar no rio. Descobriria?
O moço da reforma vinha desses lugares e desses momentos de transição no tempo; no início as roupas eram lavadas num rio, depois numa máquina. A partir de então as máquinas tomaram um lugar importante na vida do moço. Agora ele operava máquinas que cortavam telhas, que furavam paredes, que aparavam arestas e imperfeições. Máquinas que organizavam o mundo conforme as vontades de quem pagava mais. Mas ao recordar suas primeiras enchentes interiores, ele começava a entender que a vergonha que ele sentia era fruto da pura ignorância. O adolescente enxugando-se com a velha camiseta surrada nem se dava conta, nem se dava conta da vergonha que um dia o moço da reforma sentiu, ao se deparar com aquele novo tipo de fome que seu corpo adquirira. Para o adolescente, não existia o que esconder diante de um moço que reformava coisas. Seu nível de vergonha ia em direções distintas. A velha história dos manuais e valores que ele achava que desconstruía. O moço da reforma murmurou um “licença” e arrancou a tomada, novamente sem precisar entrar, apenas com meio tronco pra dentro da janela do quarto que agora exalava uma eletricidade escura de bicho enjaulado.
O adolescente atirou a camiseta numa pilha de roupas sujas e girou a cadeira, ficando novamente de costas para a janela. Tchaikovski explodiu nas caixas de som. O falante do lado direito chiava mais do que reproduzia a música. Os pombos na certa não viriam mais.
Pombo odeia Tchaikovski, odeia reforma e, principalmente: pombo odeia telhado novo.
E odeia um ódio cheio de penas sujas, abafado e grave, que só combina com valquírias cavalgando. O adolescente decidiu que era hora de começar o dia. Espreguiçou o corpo magro e ileso de penugem e foi até o banheiro onde lavou o rosto, escovou os dentes assiduamente e aplicou creme antiacne na espinha nojenta em suas costas. Quando voltou pro quarto, caminhou até a janela e afastou as cortinas. O cinzeiro de lata, que ele deixava sempre no peitoril, estava caído no telhado do prédio vizinho. Não havia sinal do moço da reforma, nem de sua máquina barulhenta, nem de pedaços de telhas danificadas. Apenas o esquecido ninho de fios da extensão elétrica. E telhado até onde a vista do adolescente podia alcançar. E o paredão do novo prédio de escritórios que se erguia eliminando qualquer utopia de horizonte.
E o barulho rotineiro da cidade que em sua cabeça se assemelhava a uma cítara de cordas enferrujadas.
Mas havia ao longe uma sirene de ambulância cortando o caos com insistência. Sim, sim, balbuciou o adolescente, e riu-fungou outros tantos “sim” como se recordasse uma situação recorrente.
Esses moços que reformam telhados sempre se desplugam da extensão quando encaram abismos.
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Agnaldo de Assis Nascimento nasceu em Diadema em 1988, atualmente reside em São Paulo. Toca guitarra e canta na banda Versus Mare. Publicou em 2019 o romance Horses, contemplado em Edital da Prefeitura da São Paulo. Também participou da antologia A Resistência dos Vagalumes.