O ARREPIO SUBLIME E O DESENCANTO EXISTENCIAL: UMA LEITURA FILOSÓFICA DO HORROR CÓSMICO DE LOVECRAFT – OSCAR NESTAREZ

Coluna | Terra Treva


O enredo é conhecido. Um cientista se vê diante de um acontecimento inexplicável. Incapaz de aceitar os fatos como eles se apresentam, o personagem resolve investigar por conta própria. A cada novo indício encontrado, fica mais evidente que o ocorrido não obedece às leis estabelecidas pela ciência humana; mas, dotado da curiosidade e da soberba características dos homens de razão, ele persiste. Quando enfim se revela o agente ou a causa do evento, torna-se evidente que o cientista atravessou o Rubicão. Foi longe demais, e deparou-se com algo que sua mente não é capaz de entender. Resultado: acaba enlouquecendo e/ou se suicidando.

Em poucas linhas, é essa a essência de uma narrativa de “horror cósmico”, ou “medo cósmico”. Assim ficou conhecida a vertente literária que, a partir do começo do século XX, consolidou-se entre autores de língua inglesa e cujas características, hoje, são encontradas em tantos livros, filmes, séries e games. O termo “medo cósmico” foi muito utilizado pelo escritor que se tornou o maior expoente dessa categoria: Howard Phillips Lovecraft (1890 – 1937). Com frequência, o Gentleman of Providence evocava-o para designar seu próprio projeto estético, construído em torno do Mito de Cthulhu — um universo ficcional povoado por monstruosidades “mais antigas que o tempo e maiores que o espaço”. Tão estreitos são os laços entre o autor e essa denominação que, hoje, mais de oitenta após a morte de Lovecraft, as narrativas de horror cósmico também são chamadas de “lovecraftianas”.

Com efeito: para o biógrafo e crítico literário S.T. Joshi (2014),  H.P. Lovecraft foi um ferrenho adepto do “cosmicismo” — outro termo criado para designar essa vertente filosófica fundada em “perspectivas cósmicas pessimistas”. De acordo com Joshi, as entidades que se espalham pelos relatos lovecraftianos são “símbolos da inescrutabilidade, do vasto mistério do universo”, Azathoth sendo a maior de todas elas. Não odeiam, tampouco amam: apenas existem, e isso já basta para nos aterrorizar.

A esse propósito, cabe aqui um comentário complementar: O biógrafo alerta para que se abandone a expressão “deuses antigos” (elder gods), tão frequentemente utilizada para designar essas criaturas. Ele nos lembra de que Lovecraft era ateu confesso e rejeitava qualquer misticismo ou crença intelectual em seres sobrenaturais. O que o interessava, destaca Joshi, era a crença imaginativa, verdadeira marca de sua ficção. Para o autor, diante da insuficiência da realidade, ou da percepção da realidade, cabia à imaginação percorrer as vastidões escuras do cosmos.

Trata-se, sem dúvida, de uma visão pautada por pessimismo e desencanto, os quais atraiu o francês Michel Houellebecq (2019). Em 1991, o autor publicou “H.P. Lovecraft: Contra o mundo, contra a vida”, ensaio que expressa o fascínio de um dos principais romancistas da atualidade por um escritor que raramente frequentou e frequenta as altas esferas da literatura, sobretudo por conta de um estilo considerado exagerado e arcaico. Para Houellebecq, a força de Lovecraft vem justamente daquela visão profundamente pessimista do cosmos; e deve ser conjugada a “um ódio absoluto pelo mundo no geral, agravado pelo desgosto particular pelo mundo moderno”. Ou, como reitera o francês em outro momento: “Em Lovecraft, o ódio pela vida precede toda literatura”.                                                                                                                     

E como se materializam tais desencanto e fúria nas narrativas cosmicistas lovecraftianas? Detendo-se na leitura crítica de alguns relatos, Michel Houellebecq dá sua própria opinião de romancista: “Todo impressionismo deve […] ser banido. Trata-se de constituir uma literatura vertiginosa; e não há vertigem sem certa desproporção de escala, sem certa justaposição do minucioso e do ilimitado, do pontual e do infinito”. É por isso que há tantas coordenadas, tantos dados científicos, tantos documentos oficiais espalhados pelas narrativas do autor estadunidense. São os pontos de apoio por meio dos quais os personagens atravessam a história, igualmente minúsculos, até o confronto com ocorrências e criaturas de inimagináveis proporções.   

Em Lovecraft, pode-se apontar a vertigem também no plano temporal. É o que se depreende da leitura de A totalidade pelo horror: o mito na obra de Howard Phillips Lovecraft (2010), estudo de autoria de Caio Alexandre Bezarias. Para o autor, o motor dos relatos lovecraftianos é o que ele chama de “mito cosmogônico”. O conceito se refere a “uma origem recuada de um cosmo organizado, do momento em que massas amorfas transformam-se em forças, em entidades e em planos distintos e separados”. Trata-se, explica Bezarias, do mito fundador, diante do qual todos os outros criados pela humanidade “dobram-se de modo inconteste”.

Assim, os textos de horror cósmico remetem ao “começo de todos os seres […] e estabelecem um limite intransponível para o conhecimento e entendimento humanos sobre esse princípio”. São narrativas que oferecem vislumbres do caos primordial, muitas vezes na forma de criaturas indescritíveis. E que, por isso, afastam-se dos temas religiosos que, muitas vezes, são as fontes de assombro na literatura de horror (na forma de demônios e entidades relacionadas, principalmente).

Na obra de Lovecraft, assim como nos livros de inúmeros autores com quem ele se correspondeu e que por ele foram influenciados, o verdadeiro horror nasce da consciência da nossa insignificância diante do caos primordial. Seus relatos não permitem que nos esqueçamos de que somos poeira, e nada mais; também nos lembram de que basta o despertar de alguma entidade antiquíssima e de proporções inimagináveis para, como poeira, sermos varridos da existência.

No entanto, cabe notar que, embora delimitado pelo autor de “O chamado de Cthulhu”, o território do horror cósmico já havia sido explorado por escritores que o antecederam. No tratado O horror sobrenatural na literatura, publicado pela primeira vez em 1927, o próprio Lovecraft fornece exemplos de algumas obras: O grande Deus Pã (1894), do galês Arthur Machen (1863 – 1947); O rei de amarelo (1895), do estadunidense Robert W. Chambers (1865 – 1933); Os salgueiros (1907), do inglês Algernon Blackwood e, claro, alguns relatos do maior ídolo de Lovecraft — seu conterrâneo Edgar Allan Poe. Mais especificamente o trecho final do romance A narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket, de 1838.

No entanto, fora da ficção encontramos um nome igualmente fundamental para a estética do horror cósmico — e das narrativas modernas de horror, no geral. Trata-se do filósofo irlandês Edmund Burke (1729 – 1797), autor do ensaio Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo (1757). A importância de Burke vem do fato de que, para ele, o horror assume papel central na constituição do sublime — ou seja, da mais intensa emoção que podemos experimentar. Afirma o filósofo irlandês (2018) que:

Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de um modo análogo ao terror, constitui uma fonte do sublime. Isto é, produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz.

Para Burke, o sublime afeta nosso espírito em quatro diferentes níveis. Três são inferiores: admiração, reverência e respeito; já o quarto, e mais intenso, é o assombro. De acordo com os pesquisadores brasileiros Júlio França e João Pedro Bellas, este seria o efeito acarretado pelas histórias de horror cósmico.

No artigo “Os desdobramentos estéticos do medo cósmico: o riso bakhtiniano, o horror lovecraftiano”, França e Bellas afirmam que, ao experimentar esse tipo de sensação, “o indivíduo torna-se incapaz de agir e de pensar”. Encontramos em Burke a justificativa para essa prostração: quando está assombrado, “o espírito sente-se tão pleno de seu objeto que não pode admitir nenhum outro, nem, consequentemente, raciocinar sobre aquele objeto que é alvo de sua atenção”.

Vejamos a definição que o próprio Lovecraft fornece, em seu já mencionado tratado, para a expressão “horror cósmico”: é “a ficção na qual o horror que se choca com o ser humano é tremendamente superior à sua capacidade de suportá-lo”. Em outras palavras: diante do caos primordial (ou do mito cosmogônico), tamanho é nosso arrebatamento que não somos capazes de raciocinar. De acordo com Burke, essa força é “irresistível”.

De fato: quase um século depois, aqui estamos, bem pouco capazes de resistir aos apelos dessas narrativas. A julgar pela enorme quantidade de livros, de filmes, de séries e de games que surgem a todo momento, o mito cosmogônico continua tão — ou até mais — fascinante do que na época de Lovecraft. O fenômeno é justificado, também, pelos avanços da física quântica, com temas que estão ampliando os limites do horror cósmico. Entre inúmeras outras obras, o romance Aniquilação, de Jeff Vandermeer (2014), que depois teve uma bem-sucedida adaptação cinematográfica, é um exemplo recente disso.

À medida que a luz da ciência vai avançando sobre as vastidões desconhecidas do universo, expandem-se também as possibilidades de criação cosmicista. Novas descobertas alargam o que já parece ilimitado; e implicam novas especulações, favorecendo narrativas de horror que pretendam colocar o homem diante de sua infinitesimal pequenez. Desta forma, também é cada vez maior o número de personagens ficcionais dispostas a espiar pelas frestas do tempo e do espaço. Para o azar delas, mas para o nosso deleite.

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Oscar Nestarez
 é pesquisador e escritor da ficção literária de horror. No campo da pesquisa acadêmica, possui Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e atualmente cursa Doutorado pela USP, tendo como objeto de estudos centrais a obra de Edgar Allan Poe. Como ficcionista, publicou Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura (ed. Livrus, 2013), as antologias Sexorcista e outros relatos insólitos (ed. Livrus, 2014) e Horror adentro (ed. Kazuá, 2016), e o romance Bile negra (ed. Empíreo, 2017), além de contos em diversas coletâneas. É também colunista da Revista Galileu, em que aborda temas da ficção de horror, e da revista Vício Velho.

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