Coluna | A Resenhista
Há muito o que se falar sobre cabelo, ou pelo menos é possível se falar sempre as mesmas coisas sobre cabelo, infinitas vezes, basta ver quantas propagandas falam de jeitos diferentes, ou nem isso, sobre cabelos mais fortes, mais brilhantes, mais macios e suas variações: cachos definidos, ondas envolventes, um liso sem frizz.
Mas se fala pouco sobre a melhor qualidade do cabelo, que é o fato de ser um preciso medidor do tempo.
Dias atrás, recebi uma foto antiga minha, em que estava cercada de pessoas. Não havia muitas referências de onde estávamos. As roupas não diziam muito, nem a pose, aquele abraço grupal costumeiro de fotografias. Porém o meu corte de cabelo não deixava dúvidas: janeiro de 2004.
Sei porque foi um corte meio radical depois de anos deixando o cabelo muito longo, e o repicado o deixou meio ondulado. O formato do corte e a franjinha bagunçada fizeram com que eu me achasse por um tempo parecida com o Jim Morrison, pelo menos quando eu usava óculos de sol estilo aviador. Como a tal da foto foi tirada no verão, imediatamente lembrei de tudo, mesmo que estivesse sem óculos naquele momento.
Os cortes de cabelo, tinturas, procedimentos como escova progressiva e permanente são indicativos de épocas, não apenas pelas mudanças da moda, mas nossas trajetórias pessoais com nossos cabelos. Os meninos quando entram na faculdade, ou aquela fase em que todos decidem deixar o cabelo crescer. As mulheres que sabem exatamente por que aquela era a hora de ficar ruiva ou de investir na nanofranja.
Alguns momentos da minha vida me lembram até as mudanças que eu demorei para fazer no cabelo, ou as que eu nem fiz. O dia que eu comprei por impulso uma tinta azul, por exemplo. Esse pensamento: quero ter o cabelo azul, serviu de mnemônica para todas as minhas angústias daquela semana. Ao chegar em casa, testar a tinta e ver que ela deixava o meu cabelo em um tom quase verde (impossível não associar com o tom esverdeado das madeixas na infância, cor de piscina-todo-dia), foi como acordar para a minha realidade e aceitar que muitas mudanças pelas quais ansiava não passavam de planos impraticáveis. Nos dias seguintes, lembro de ver a mecha desbotando e voltando ao loiro de sempre, o que foi me trazendo uma resignação silenciosa, discreta.
O silêncio é a língua do cabelo. Quando ele cresce, quando ele cai. Observar o cabelo não faz com que ele cresça mais rápido, colocar um fio abandonado de volta em seu lugar não o prende novamente. Apesar disso, eles brotam e escapam aos montes, o que vemos é só uma parte extrema, que rouba a nossa atenção. O alívio do cabelo que chegou enfim aos ombros, que ultrapassou os seios, é o mesmo do dia que acaba, vezes mil. Pode vir com um susto, de quem não viu o tempo passar, ou com uma indiferença melancólica, da qual eu fujo mas na maior parte dos dias não consigo evitar. Encontro uma falha, uma ponta dupla, fios espetados em direção ao meio da testa. Começo a pensar em um novo corte, e o desejo mesmo de mudar se espalha por dias sem que nada aconteça, nada exceto os milhares de fios que saem voando, os outros que explodem em novas células e poluem a minha cabeça como um retrato fiel dos pensamentos que o cabelo esconde.
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Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá), além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutoranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer.
(Imagem Hülya Özdemir)