Coluna | A Resenhista
Fiquei anos sem mouse e, agora, depois de uns dois meses com, não consigo viver sem.
Fala-se muito na memória do corpo, em especial na máxima “andar de bicicleta é coisa que se aprende e nunca esquece”, mas pouco discutimos a amnésia do corpo. Pouco tempo depois de instalar o mouse na saída USB do lado esquerdo do computador (pois canhota), parece que esqueci como usar o pad que serve para deslocar a seta com o movimento dos dedos.
Foi muito rápido o apagamento dessa habilidade, como se um traço muito específico da coordenação motora tivesse evaporado. Agora ficou engraçado que a superfície esteja até desgastada na sua metade esquerda, após tantos anos de uso, e agora repousa inutilizada.
O corpo parece esquecer rápido tantas ações cotidianas, como deixar as chaves ao lado da porta de entrada. Dia sim, dia também, o chaveiro cai e faz um barulho rápido e incômodo, e amanhã cometerei o mesmo deslize. Talvez então seja a memória da queda, e não o esquecimento de colocar a chave no lugar certo.
Eu lembro que, na época que todo computador exigia um mouse, e que por acaso eu não tinha o meu próprio, algumas vezes cheguei a ficar com tendinite no pulso esquerdo de tantas horas mexendo setinha para lá e para cá. Não lembro o que eu fazia, se era algum jogo, se desbravava a Internet com a excitação da novidade.
Mas eu recordo perfeitamente da dor, dos cliques, da irritação com as falhas nos controles que exigiam tirar a bolinha e fazer algum tipo de superstição para que o mouse voltasse a funcionar. Hoje, que eles são apenas “movidos a luz”, ficaram ainda mais místicos. Toda a minha memória daquelas tardes é focada no que fazia uma das minhas mãos, e no seu prolongamento automático, o mouse.
Agora recuperando esses tempos para escrever sobre, é como se a dor voltasse, a tendinite. A necessidade de alongar. De novo, não sei se é a rememoração de uma sensação (e portanto, de uma série de movimentos e habilidades) latente ou o esquecimento da capacidade mais recente, e talvez até pelo frescor, mais frágil. Qual o talento do corpo, esquecer ou lembrar?
Pode ser que o corpo não tenha nenhum talento, seja mais uma ferramenta moldada por aquilo que é acoplado a ele, então o talento é do mouse, que nos educa quase que instantaneamente sempre que posicionamos os dedos em seus botões, que descrevemos pequenos arcos para a seta na tela ir de uma ponta a outra (sempre achei curioso quão instintivo é o reconhecimento dessa distância virtual).
Fiquei anos sem mouse e, agora, depois de uns dois meses com, sei que a minha tendinite nunca melhorou de fato.
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Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá), além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutoranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer.