UM EXPERIMENTO SOBRE PODER VOLTAR – ADRIANO B. ESPÍNDOLA SANTOS

Coluna | Anseios Crípticos


 

No início de um ano letivo da década de noventa, a professora Neuza apresentou à turma uma lista de autoras e autores que seriam lidos; doze ao total. Eram Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles, José de Alencar, Raquel de Queiroz, Machado de Assis, e um tanto ainda, de que não me lembro bem.

 A primeira tarefa: ler “O alienista”, de Machado de Assis, pois teríamos uma série de debates em sala. Então, a minha iniciativa foi, ao chegar em casa, dentro daquela ruma de livros, catar o que seria o causador da minha iminente angústia.

O livro em si já possuía uma capa inquisidora, como se declarasse: “Você, leitor, repare bem!”. Mas, para despistar a ansiedade do desconhecido, fui ao cerne, à imagem do mestre. Aqui, vale o adendo: atualmente mantenho esta prática, como uma compulsão pessoal, para admirar e me tornar mais íntimo; como a pedir uma bênção e a festejá-lo(a), ao mesmo tempo, pela incrível forma idealizada.

Numa foto em preto e branco, sobressaíam a barba e os óculos, muito condizentes com os costumes de sua época, pelo visto. Da aparência, propriamente, não discernia a diferença radical que o separava, por exemplo, de outros notáveis da história: José de Alencar ou Rodolfo Teófilo. Eram homens sérios, reservados, que metiam medo em qualquer criancinha – assim eu os imaginava. Era como se dissesse: “Vá ao texto, rapaz; não se demore em conjecturas sobre mim”. No entanto, assumo, o ar soturno e enigmático, de poucos amigos, atraía a minha afeição.

De todas as leituras até então, “O alienista” era a que mais me agradava, especialmente pelo choque e pelo impulso à fantasia. E, na medida em que ia lendo, voltava à orelha do livro para verificar a foto do bom amigo; se ele estava de acordo com a minha intromissão; se poderíamos continuar assim, cada um com o seu papel cativante no mundo sensorial.  

Dai a César o que é de César: Machado passou a ter um aspecto cordial, amigável, apesar da introspecção. Não era tão resoluto como José de Alencar. Eu tentava, com as minhas faculdades inventivas, seguir os seus passos; e aqui falo no sentido de caminhar junto, ou voar ao lado, como uma mosca, para perceber como ele vivia; se tinha esposa e filhos; se dormia cedo ou tarde; se era exagerado na comilança, ou um moderado vovô com problemas estomacais – como o meu avô.

Machado, com a sua singular discrição de confundir o leitor, me levava e me trazia, como um barco à deriva, a questões significantes e relativas, que nada tinham a ver com o conteúdo da obra. Quando eu achava que tinha encontrado respostas para as minhas inquietações, ele me jogava para o outro lado do imenso oceano, para que eu me perdesse mais tempo em divagações. Portanto, a nossa relação era comparada à de um tutor e seu aluno, sempre atribuindo mais vento à vela do conhecimento.

Houve um dia em que me chateei com o modo que Machado me tratava. Joguei o livro para o lado; olhei o relógio e sequestrei boas horas da tarde nas brincadeiras com o meu vizinho, o João. Perdi a conexão com a tarefa demandada na escola. Quando amanheci, no dia seguinte, vi, por acaso, o livro imprensado entre a cama e a estante. Quem teria jogado aí? O meu cachorro havia mexido? Oh, não. Sim, o Bolinha havia mexido e estraçalhado boa parte da alegoria; havia ainda pedaços de papel em seu pelo, incriminando-o. A minha reação, contra os prognósticos, foi me voltar para o casulo do meu interior.

Chorei, com uma espécie de remorso, e pedi à minha mãe que comprasse um novo livro, com uma capa mais dura, se fosse possível. Minha mãe ficou danada com o meu desleixo e comprou um exemplar igualzinho, prometendo-me que, se eu descuidasse mais uma vez, ficaria sem videogame.

Não foi bem um decreto do qual advém o medo. Pensei que o videogame estava ruim e não tinha fita nova – fita, para que os mais jovens entendam, era um acessório que se conectava ao videogame e, na tela, projetava um jogo. Tanto faz como tanto fez. A preocupação era guardar o livro como um objeto arqueológico; como uma preciosidade única; e, de tal modo, me redimir com o mestre pela confusão.

A referência de minha mãe ao videogame teve a intenção de deixar claro que eu não faria algo “prazeroso” – jogar videogame – se negligenciasse o livro; mais pelo lado financeiro, e para dar valor às coisas, “que compramos com muito sacrifício”.

Diferente dos meus amigos da escola e do bairro, a obra me prendia muito mais que um videogame arrebentado pelo cansaço, ultrapassado por uma avalanche de novas ondas eletrônicas. Eu estava crente que “O alienista” me botaria em labirintos e brincadeiras que a minha mente não teria ousado criar.

Eu precisava – uma espécie de carência física e emocional – entender a biografia especial escondida naquelas páginas. Machado estava ali; a vida de Machado estava metida nas criptografias da eternidade.

***

A professora entrou na sala dando gosto à provocação: “E aí, turma, analisaram o papel do Dr. Simão em Itaguaí? As suas atitudes são humanistas ou não? O que a história tem a ver com os dias de hoje?”. Eu estava conversando com o meu amigo Tiago e, ouvindo a voz potente da professora, me virei, duro e desordenado. Na verdade, eu não tinha sequer escutado direito o que ela havia dito. Importante lembrar que o meu elo com a professora-gramática não andava nada bem – eu a chamava assim, porque ela era afeita a normas; muitas normas: rigorosíssima.

Além do mais, eu ficava no fundão não para ser o “do contra”, mas para passar ileso. Eu não era de conversinha, de bagunça, nada disso. Nem sei qual era a cisma que a professora tinha de mim. Teria eu uma aura não detectada? Seria um ente fragmentado e distópico, execrável? Talvez eu me sentisse assim.

Logo, estava fixado nas entrelinhas, em letras garrafais: eu não gostaria de apresentar a minha visão sobre o livro; eu não tinha opinião formada, e estava encantado muito mais com o todo hipnótico, com a costura das palavras, do que com subjetividades arranjadas – logicamente, na minha percepção, a professora inventaria um resultado contrário ao meu para, ao fim, me dar uma nota baixa.

Nenhuma discussão era, para mim, necessária e agregadora – nas circunstâncias neuróticas de ser afrontado. A professora prosseguiu, olhando para mim: “Machado de Assis, o grande cultor de ilusões, tem uma resposta muito clara para isso: o poder e a sociedade. Não é? Quem se habilita a falar sobre?”.

Foi longo o nervosismo, sabendo que estava se aproximando a minha hora. Ela tinha o prazer de me torturar, de me colocar de frente aos leões do escárnio: os meus amiguinhos, com os seus bullyings camaradas.

Eis que chega o momento: “André, o que você pensa acerca de ‘O alienista’ e a sociedade moderna?”. Olhei para a professora, dei um giro também nos colegas, e permaneci inerte, colapsado. Pedi ao São Machado que me socorresse. De súbito, as palavras saíram: “É assim: Machado não tem tempo. Ele fala como se fosse agora, pra gente. As pessoas pensam que têm força, poder, e embaralham tudo. O que eu quero dizer é que os seres humanos são assim, cheios de si, donos da verdade, e tornam o mundo uma completa alucinação”.

A professora fez uma cara de espanto, como se não acreditasse; impedida de dar uma nota baixa, já que as estrelas da sala me aplaudiam. Juro que não tive o intuito de tumultuar, mas foi ali que o portal se abriu e eu percebi que tinha muito a aprender com o grande cultor das ilusões.

Um experimento que está sempre à mão; em que posso confiar; para quem devo voltar: Machado.

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Adriano B. Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

• Ilustração Kácio

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Referências

ANDRADE, Maria Vanesse; LIMA, Aluísio Ferreira de; SANTOS, Maria Elisalene Alves dos. A razão e a loucura na literatura: um estudo sobre o alienista, de Machado de Assis. Acesso em 28.07.2021.

GOMES, Roberto. O alienista: loucura, poder e ciência. Acesso em: 28.07.2021.

MACHADO DE ASSIS. O alienista. Acesso em: 27.07.2021.

SALES, Célia Pires Maciel. A ironia como crítica social na obra “O alienista” de Machado de Assis. Acesso em: 27.07.2021.