Coluna | A Resenhista
Às terças e quintas feiras, eu tenho visto uma mãe levando seu bebê no carrinho.
Primeiro, não necessariamente é a mãe. Segundo, não necessariamente é um bebê.
Pode ser tia, babá, sequestradora de crianças. Pode ser que o bebê não se encaixe nessa categoria, sendo necessário chamá-lo de menino, garotinho. Não sei precisar quando definitivamente se faz essa transição.
Como é um carrinho desses que me parece destinado a bebês maiores, ou meninos menores, enquanto passo por eles fico me perguntando a respeito dessas categorias. O processo de se transformar, sempre gradual, o que nos leva a criar categorias mais e mais específicas.
Toda vez me impressiono com o bebê-menino, e não consigo não pensar nele porque tudo nele é perfeito. O cabelo preto enrolado, a boquinha sempre entreaberta, as mãos gorduchas querendo pegar o mundo à sua volta.
Mas tem algo a mais no meu esforço contínuo em classificar o bebê no carrinho. É que ele é tão fofo, a definição de fofo, que não parece real. Um tempo atrás li uma reportagem sobre bebês reborn, bonecos anatomicamente precisos que têm despertado a atenção – e a obsessão – de muitas pessoas, que cuidam desses brinquedos como se fossem seus filhos, de forma que também me pergunto se a fragilidade dos nossos encontros não me deixa ver que na verdade o que eu vejo duas vezes por semana é uma adulta passeando com um boneco.
Imagino uma realidade paralela em que não estou vendo muito lentamente a transição do bebê em menino, e sim do boneco em humano. E essa mudança é a da história que lentamente eu crio na minha cabeça, cada vez que o vejo de longe no parque.
Os bebês reborn são sempre acompanhados de uma história: ao adquirir uma unidade, aparentemente você recebe informações sobre seu nascimento, claro, uma narrativa fantástica que dará início a uma transformação mágica na sua vida, agora pai ou mãe de boneco. Essa transformação é permanente. O bebê nunca crescerá. Tem a estaticidade do plástico. Das decisões definitivas, ou que apenas têm essa pretensão.
Em algum momento, eu vou ter que me decidir se é um bebê, menino, ou boneco. E se a mulher é mãe, tia, babá, sequestradora, maluca. Nunca dei a ela a oportunidade de se formar progressivamente e transitar nas categorias. Sempre definitiva, em busca de algo que me permita ser taxativa.
Ou eu posso procurar mais hipóteses. Mas eu acho que a do brinquedo que toma vida é insuperável. É a única que permite uma metamorfose também da mulher.
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Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá), além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutoranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer.