COLUNA DAS AUSÊNCIAS – VALENTINA BASCUR MOLINA

Coluna das Ausências


“It was the right thing to do, but she has no right to do it” [Era a coisa certa a ser feita, mas ela não tinha direito de fazê-la], falou Toni Morrison numa entrevista concedida em 1987, a propósito do seu livro “Amada”. No romance, Sethe, a protagonista mata sua filha pequena, antes de serem capturadas pelos capatazes, para impedir que esta seja condenada a uma vida de escravidão.

Na entrevista, Toni Morrison conta quando leu a história real de Margaret Garner, uma mulher que matou a sua filha no século XIX, para salvá-la da escravidão. Ela ficou com essa história na cabeça durante bastante tempo e a inspirou para escrever a história de Sethe.

O relato de Morrison parece muitas vezes difícil e indigesto, mas sinto que é a sua forma de humanizar as escolhas de Sethe.

Como sobreviver às ausências?

Quando entrevistei a poeta e acadêmica indígena mapuche, Maribel Mora Curriao, e tive contato com a sua obra, as sensações foram similares. É uma escrita que tenta desenhar as ausências, que denuncia as privações. Ela relata que quando é questionada por escrever em Espanhol, e não em Mapudungun, língua mapuche, aproveita a brecha para mencionar que a ausência da sua língua materna é produto do apagamento de uma cultura.

Há uma história de ausências por trás da língua que usamos para nos escrever.

Durante gerações, pais e avós se recusaram a falar, conversar com as crianças em Mapudungun dentro das suas casas. Nas suas memórias de infância, Maribel Mora comenta que o Mapudungun ficou relegado aos assuntos dos adultos.

Falar os motivos pelos quais se escreve em Espanhol, é uma oportunidade para falar o porquê não se escreve em Mapudungun. Nas escolas rurais, muitas delas, criadas por missões religiosas, as línguas indígenas faladas pelas crianças eram punidas com castigos físicos.

A língua passou a ser evitada dentro das casas para evitar os castigos nas escolas, para proteger as crianças do racismo. 

A escritora é enfática em mencionar que o que lhe resta hoje em dia, é procurar nos retalhos da memória as partes que faltam. Estabelecer uma jornada de novas descobertas desde o ponto de vista de quem foi lhe negado o acesso à sua cultura, as formas de pensamento e de habitar o mundo, contidas na língua. 

Quando penso nas gerações de pais e avós que quiseram poupar a dor dos seus filhos negando a língua, penso em Sethe. Penso no seu exercício extremo de poupar a filha de uma vida de escravidão. Toni Morrison nos coloca, enquanto leitores, numa contradição constante entre condenar a escolha de Sethe, e compreendê-la, entendendo que as consequências do racismo são devastadoras.

As consequências do racismo e do etnocídio, são devastadoras, também em níveis subjetivos, e a palavra escrita, assim como a palavra falada, vem como uma possibilidade para reconstruir essa ausência.

Performance da artista Paula Baeza Pailamilla. “Mi Cuerpo es un Museo” [Meu Corpo é um Museu], 2019. Museu das Artes Visuais, Santigo de Chile. (Imagem: Valentina Bascur Molina)

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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.